A MÚSICA E A VIDA
PAULO AFONSO LINHARES
Se Deus tiver um idioma para sua expressão, certamente essa língua bendita e divina há de ser a música. Todavia, embora tenha a música exercido especial fascínio sobre mim, desde quando me lembro, fiquei na nobilíssima função de mero apreciador dos ritmos, instrumentais, cantores, coristas, cantadores, compositores e intérpretes, dos safados aos sublimes. Inicialmente, coube embrenhar-me pela leitura de muita coisa que se escreveu na literatura de cordel (os antigos, de Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde, João Melchíades Ferreira - autor do "Romance do Pavão Mysteriozo", "Roldão no Leão de Ouro" e a "História do Valente Zé Garcia" - , José Costa Leite, entre outros), depois vieram os gibis de toda natureza e, finalmente, os livros, livros a mancheias, para lembrar um trecho do poema "O livro e a América” de Castro Alves (“Oh bendito o que semeia, livros, livros a mancheias e manda o povo pensar..."). Livros pela vida afora; música, somente para ouvir, dançar... Paciência, cada qual no seu quadrado. Nada daquele besteirol figurado da letra do samba "Assobiar ou chupar cana", de Benito de Paula, naquele trechinho que diz: "Seria muito bom/Seria muito legal/Se cantor ou compositor/Pudesse ser ator ou jogador de futebol..." Nada impede alguém de assobiar e chupar cana, a um só tempo. É apenas uma questão de especial talento e dedicação.
Na infância/adolescência, era muito pobre para ter um instrumento musical de verdade para iniciar-me na música. Estranho era um vizinho nosso, mais velho que eu um pouco, que vinha pedir que lhe emprestasse uma humilde gaita de baquelite (o avô dos materiais petroquímicos plásticos atuais), com a qual tocava magistralmente todas as músicas executadas pelo serviço de alto falantes mantido pela Prefeitura. As partir daí passei a desconfiar que aquele fulano tinha bem mais talento para música que eu, cuja função, naquele caso, resumia-se à de apreciar e ser o dono da gaita que, quando a mim retornava, era outra vez inoperante, estúpida a emitir sons desconexos ou, para o alívio geral, ficava muda e esquecida num canto. Depois vieram os violões, os teclados e... nada! Na vida agitada e multitarefa jamais coube aquele tempo de dedicação ao domínio de um instrumento musical nobre. Digo nobre porque nesse rol não entram zabumba, triângulo, pandeiro ou reco-reco, coisas de povos primitivos, embora possam, também, ajudar em muito na parte rítmica, naquilo que seria mesmo o "molho" da música.
Quando pensei já estar perdida a interface musical, eis que li a interessante história de um exímio pianista austríaco que, perdendo um dos braços na frente de batalha, na I Guerra Mundial, posteriormente ao fim do conflito pediu a bons compositores europeus que compusessem peças musicais que ele pudesse tocar apenas com a mão esquerda.esquerda. O compositor Maurice Ravel (aquele do famoso "Bolero de Ravel"...) acudiu-o e compôs o "Concerto para a mão esquerda" e foi utilíssimo para o pianista Paul Wittgenstein, irmão do filósofo Ludwig Wittgenstein, o do pomposo Tractatus Logico- Philosophicus. E Paul - meu xara! - deu-se bem com a ideia, além das diversas composições de músicos famosos que passou a executar apenas com a mão esquerda, feitinhas para ele.
Cá com meus botões tive a impressão aquela era a vez, a minha vez. Ora, minha dificuldade nos teclados e harmônicas de todos os naipes (as sanfonas, gaitas, foles etc.) era justo por não saber usar as duas mãos; conseguindo apenas solar, sem qualquer acompanhamento. Foi ai que conheci a música de Ravel para manetas e com isso a grande decepção: era muito mais difícil executá-la, pois com uma só mão deveria fazer o que os gênios fazem com duas... Desisto. Vou de zabumba, timba, reco-reco ou mesmo quero me ver "de frigideira numa batucada brasileira", para lembrar do genial, Jackson do Pandeiro. E criar vergonha aprendendo a tocar os teclados e afins com-as-duas-mãos; é só ter vontade de realizar que a coisa já fica um pouco feita. E a música tem essa magia de acontecer, quando se incorpora à vida. A descoberta do que pode "dizer" nessa língua divina, cada voz, cada instrumento, revela uma infinita possibilidade de combinações sonoras. Sem os atalhos ou as facilidades, como tantos pensam. Ela se incorpora, acontece.