LEGADO INCÔMODO
Paulo Afonso Linhares
Foram muitas as manifestações pela passagem do cinquentenário do golpe de Estado, perpetrado por militares e com participação de lideranças políticas civis, que apeou do poder João Belchior Marques Goulart, o 24º presidente da República Federativa do Brasil, em 1º de abril de 1964. Aliás, algumas dessas manifestações até de apoio à “Revolução de 64”, posto que minoritariamente. Claro, muita tinta foi gasta em análises desse episódio que eclipsou por mais de duas décadas (para alguns historiadores a ditadura militar de 1964 terminou em 1985, com o fim do governo do último dos generais-presidentes; para outros, com mais razão, ela somente acabou com a promulgação da Constituição de 1988, com o início de uma nova ordem jurídico-constitucional), todavia, em sua maioria produziram-se reflexões de cunho maniqueísta e superficial, quando não resvalaram para alguns lugares comuns, como a explicação de que tudo se dera em função dos interesses norte-americanos, no auge da “Guerra Fria” (designação relativa ao período histórico caracterizado por confrontos estratégicos e conflitos indiretos, com a divisão do mundo, entre os Estados Unidos da América e a antiga União Soviética), embora efetivamente tenha pesado mesmo um conjunto de fatores endógenos à sociedade brasileira.
Tudo bem, no viés jurídico-institucional esse período de exceção teria sido sepultado com o advento da Constituição de 1988, a despeito do chamado “entulho autoritário” recepcionado pela ordem inaugurada com o novo figurino constitucional e político. Entretanto, remanescem insepultos e não esclarecidos diversos episódios de graves violações aos direitos humanos, muitos dos quais até enquadráveis como crimes de lesa-humanidade e como tal imprescritíveis e jamais abrangidos pela Lei da Anistia de 1979, conforme entendimento do Direito Internacional, razão pela qual o próprio Estado brasileiro, ao lado das tentativas de reparação pecuniária em face dos danos materiais e morais causados a muitos brasileiros, criou recentemente a Comissão Nacional da Verdade (Lei nº 12.528/2011), cujo funcionamento se iniciou em 16 de maio de 2012, “com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. Frise-se que esse lapso temporal vai de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988.
Uma bela e não menos inócua tentativa da sociedade brasileira de promover um acerto de contas com o seu passado das últimas seis décadas. Menos românticos, os nossos vizinhos argentinos meteram na cadeia os algozes do período da sanguinária ditadura militar argentina (1976-1983), alguns dos quais até morreram no cárcere, a exemplo do general Jorge Rafael Videla, falecido (aos 87 anos de idade) em 17 de maio de 2013, na prisão de Marcos Paz, onde cumpria pena de prisão perpétua por crimes cometidos durante seu ilegítimo governo (1976-1981). Por aqui o “jeitinho brasileiro” infelizmente prevaleceu, com carrascos e torturadores beneficiados pelo generoso e irrestrito perdão da Lei de Anistia (Lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979), muitos dos quais já morreram no próprio leito e no aconchego da família, embora tenham contribuído para criar a legião de órfãos da ditadura militar de 1964. Entretanto, embora mereça tanto o Brasil uma verdadeira catarse (do grego κάϑαρσις = “purificação”), não é justo circunscrever apenas às casernas a nossa incômoda herança autocrática.
Trocando em miúdos, o que mais preocupa no Brasil não é esse acerto de contas mal-ajambrado com a ditadura militar de 1964, mas, uma persistente cultura autoritária que transcende os quartéis e se faz presente nos diversos níveis do Estado brasileiro, nas universidades, nos veículos de comunicação, nas instituições da sociedade civil, inclusive aquelas de caráter religioso. É um fardo pesadíssimo esse legado de autoritarismo entranhado no próprioethos da civilização brasileira e que se traduz no onipresente olhar da Casa-Grande para a senzala.
Basta ver que, no âmbito do Estado, avulta um Poder Executivo imperial em que o presidente da República exerce um mando longe da imaginação de Nabucodonosor, Xerxes, Ramsés II, Alexandre da Macedônia ou Napoleão I, ao lado de um Legislativo omisso e fisiológico que se completa com um Judiciário tentado cada vez mais a exercer uma tutela da nação a partir de uma fortíssima tendência contemporânea de judicialização da vida. É esse malsão legado autoritário que perpassa toda a sociedade brasileira, suas instituições jurídico-políticas e sociais, sejam espaços públicos ou no recesso da vida privada, no mundo real e no ciberespaço, que deve ser desconstruído para que possa a comunidade de cidadãos se reconciliar com a História; é a catarse imprescindível que a sociedade brasileira deve ter a coragem de fazer, bem mais do que simplesmente encontrar desaparecidos ou desenterrar cadáveres não identificados, para reposição da verdade nesta nação. Cedo ou tarde a faremos.
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