terça-feira, 2 de outubro de 2018

Artigo de Paulo Afonso Linhares

DE  ARROUBOS E JABUTICABAS

Paulo Afonso Linhares


Em momentos de perplexidades e grandes incertezas, é seguro e útil aquela lição do historiador inglês Arnold Toynbee, para quem "uma curiosidade de explicar e compreender o mundo é o estímulo que leva os homens a estudarem o seu passado." É a História que se gesta da curiosidade do homem por si mesmo. Por isto foi que, após ver uma polêmica entrevista de Jair Bolsonaro, candidato de PSL à presidência da República, resolvi reler aquele instigante livro de Carlos Castelo Branco intitulado “A renúncia de Jânio”, edição do Senado Federal. Afinal, como adverte George Santayana (pseudônimo de Jorge Agustín Nicolás Ruiz de Santayana y Borrás, um filósofo, poeta e ensaísta espanhol que, aliás, escrevia em inglês):“aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. 
Em suma, os povos que não conhecem a sua História correm o risco de repetir seus erros. Daí que lembrar das histrionices do “Homem da Vassoura” pode ser uma chave para compreensão da atual cena política brasileira.
Um dos mais importantes jornalistas brasileiro do século XX, “Castelinho”, que conviveu com os bastidores do poder, traz o mais significativo testemunho sobre esse episódio que tanto impactou a História nos anos 1960 e centrado na figura exótica de Jânio da Silva Quadros, um furacão bigodudo, vesgo, desengonçado e bêbado que, vassoura à mão, passou pelo Palácio do Planalto. Hoje, vendo o que faz e, sobretudo, diz o candidato Bolsonaro, inevitável não recordar o Mago de Vila Maria, Jânio da Silva Quadros, embora este fosse intelectual e culto. O populismo de direita, o corte autoritário e avesso à democracia, as ideias ultra-conservadoras e a propensão para dizer em tons de arroubos as coisas erradas nos momentos impróprios, aproxima esses dois personagem da política brasileira, um de ontem e outro de hoje.
A despeito da forte base popular, os sete meses de governo Jânio foram conturbados, sobretudo, pelas dificuldades cada vez maiores do relacionamento  com o Congresso Nacional. A megalomania e esquisitices de Jânio Quadros produziram mais crises políticas do que poderia ser contornado pelo competente time de seus auxiliares e aliados políticos, como Oscar Pedroso Horta, José Aparecido de Oliveira, San Thiago Dantas, Afonso Arinos de Mello Franco e Araújo Castro, entre outros. 
Para implantar a sua “política de austeridade” e de combate à corrupção, além de inovadoras medidas econômicas e administrativas -  que deram ao seu governo de feição conservadora algo de revolucionário -, Jânio hostilizou além do razoável a sua base parlamentar (demonstrava enorme desprezo pelo Congresso Nacional), fustigou e afastou do seu convívio importantes figuras dos partidos aliados que garantiram sua eleição, a exemplo do poderoso governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, que passou a combatê-lo com a mesma tenacidade como fizera com Getúlio Vargas e Juscelino Kubitscheck. Sem poder acusá-lo de corrupto, Lacerda, o Corvo, passou a fustigá-lo em cadeia nacional de rádio e televisão com a acusação de que Jânio era um golpista e planejava o fechamento do Congresso para se manter no governo com poderes autocráticos.
Mesmo com enorme desgaste político e sem apoio parlamentar, Jânio renunciou à presidência da República através de lacônico bilhete remetido ao presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade que, num gesto inusitado e sem rodeios, leu o curto escrito e de imediato declarou vago o cargo. Isto  trouxe uma dificuldade para a tática de Jânio, que planejou chantagear o Parlamento e voltar ao governo com poderes extraordinários. Não funcionou e impôs ao país a degringolada política que desaguou no Golpe de 1964 e seus nefastos efeitos para as instituições democráticas que se estenderiam por 21 anos.
Episódios recentes da campanha de Jair Bolsonaro remetem-nos a Jânio e reforçam a suspeita de que as instituições democráticas podem estar em risco. “Pelo que eu vejo nas ruas, não aceito resultado das eleições diferente da minha eleição”, afirmou Bolsonaro em recente entrevista ao jornalista José Luiz Datena, da Band, a partir de sua desconfiança no sistema eleitoral brasileiro: “Não confiamos em nada no Brasil. Até concurso da Mega-Sena a gente desconfia de fraude. Estou desconfiando de alguns profissionais dentro do TSE”. Fechou o tempo.
Na mesma entrevista, Bolsonaro revelou que proibiu o general Hamilton Mourão, seu candidato a vice, de dar declarações políticas até o dia da eleição, por ter dito em palestra proferida no Rio Grande do Sul que o governo Bolsonaro-Mourão extinguirá o terço de férias dos trabalhadores, além do décimo-terceiro salário, esta “jabuticaba brasileira”,  no seu entender. Um abalo enorme, porquanto o banimento desses direitos, aliás, está fora de todas agendas políticas, mesmo as daqueles partidos marcadamente liberais, a exemplo do Partido Novo, de João Amoêdo. O boquirroto general foi punido por seu chefe, Bolsonaro, com algo parecido ao “silêncio obsequioso”, uma das punições contidas no Código de Direito Canônico que é a imposição, pela autoridade eclesiástica superior à inferior faltosa, da proibição de produzir falas ou escritos públicos opinativos sobre matéria religiosa. Isso, na Igreja Católica Romana. A dúvida que remanesce é se o general Mourão vai aceitar esse “cala a boca, Ofélia!”. Noutro chão, no da caserna, general não  acata ordem de capitão. Sem embargo, pelas regras do “jus militari” seria uma inaceitável inversão, todavia, o fato é que essa dissensão se dá noutro âmbito, no movediço chão da política, onde tudo pode acontecer, até boi voar. Para o Mourão-velho-de-guerra-nenhuma é melhor “já ir se acostumando” com essas inversões (ou perversões?) da hierarquia.
O freio de mão do capitão também serviu para corrigir seu guru, o ultra-conservador banqueiro Paulo Guedes que, de modo precipitado e não menos descuidado, disse que um dos pontos básicos do projeto econômico do governo Bolsonaro seria a recriação da famigerada CPMF, aliás, algo bem contraditório ao breviário liberal apregoado aqui e alhures. Guedes teve que sair na base do “não é bem assim” e, igualmente ao general Mourão, preferiu, também, o obsequioso silêncio. 
Entretanto, talvez não fiquem tão calados assim por muito tempo, se confirmada nas urnas deste outubro de 2018 a tendência de vitória de Bolsonaro, para inaugurar uma era em que o arrombo vence a prudência, o retrocesso aniquila os avanços sociais e a barbárie, em múltiplas feições, se converte no credo da nova elite que terá empalmado o poder da República. Resta-nos acreditar que estava certo Heráclito de Éfeso quando numa curta frase, formulou o chamada Teoria do Devir: “tudo flui, nada permanece”. E nem será preciso imitar o bizarro suicídio desse filósofo em que cobriu o corpo de esterco e foi para a praça, onde cães raivosos o devoraram. Qualquer que seja  o resultado que podem parir as urnas neste tempo desconfiado e de futuro incerto. Tudo passa, nada fica. Nem arroubos ou jabuticabas.

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