domingo, 3 de janeiro de 2016

Artigo de Paulo Afonso Linhares

O GARANTISMO ESTÁ MORTO?

Paulo Afonso Linhares 

Algumas pessoas guardam fortes superstições acerca dos anos terminados em "15", sempre vistos como péssimos e conturbados. No Brasil, a tirar pelo atribulado ano de 2015 que ora si finda, em especial na política e na economia, justifica plenamente essa objeção. Contudo, a despeito de não levar isto em consideração, acontecimentos ligados à área do Judiciário que plasmaram as atenções dos grandes veículos midiáticos do Brasil, além das conturbações políticas e dos revezes econômicos, deixam a impressão de que, ao menos neste quarto de século que medeia o advento da Constituição de 1988 e 2015, este foi o mais complicado, senão mesmo o pior destes anos.
Das tribulações observadas, pode ser extraído um aspecto bem significativo que se traduz no desprestígio do garantismo jurídico enquanto "sistema sócio-cultural que estabelece instrumentos jurídicos para a defesa dos direitos e consequente defesa do acesso aos bens essenciais à vida dos indivíduos ou de coletividades, que conflitem com interesses de outros indivíduos, outras coletividades e/ou, sobre tudo, com interesses do Estado", para usar a definição singela do procurador da República Alvaro Stipp, em esclarecedor artigo sobre o tema (disponível em http://bit.ly/1MEGQUQ).
Com efeito, garantismo jurídico é uma postura jurídico-filosófica que decorre da ideia-força do Estado de Direito e caracterizada pela adoção de um complexo de limitações às atividades estatais estabelecido em favor do cidadão na própria Constituição e nas leis, entre as quais se destacam, como foco desta reflexão, as garantias penais e processuais que reduzem as restrições  à liberdade decorrentes do poder punitivo outorgado ao Poder Judiciário.  Acerca destas, opina o já citado Stipp, que as "garantias penais (taxatividade, materialidade, estrita legalidade, princípio da ultima ratio, etc) afetam a configuração legal do delito e tendem, inclusive, a reduzir a esfera de atuação do próprio Poder Legislativo naquilo que ele possa sancionar (a esfera dos delitos) e imputação de penas", enquanto que as "garantias processuais (presunção de inocência, contraditoriedade, paridade de armas, in dubio pro reo, ônus da prova, publicidade, juiz natural, devido processo legal, etc) afetam a comprovação judicial do fato punível e procuram reduzir ao máximo o arbítrio de quem desempenhe as tarefas estatais."
No campo eminentemente penal, o garantismo segue colado à noção de “minimalismo penal” cuja proposta central é de que haja um sistema com menor intervenção do Estado e adoção de máximas garantias à liberdade do cidadão sem, todavia, anular o direito de punir estatal, mas, apenas minimizando a sua utilização na solução dos conflitos em matéria penal, com redução do seu campo de atuação a partir de uma ampla descriminalização de condutas típicas, bem como o impedimento de criminalização de outras tantas, aliás, neste caso, algo tão ao gosto do legislador ordinário deste país. O “direito penal mínimo” é informado por uma série de princípios: intervenção mínima (o Estado deve abster-se de invadir a esfera da liberdade e autonomia do cidadão, por motivos banais), fragmentalidade (apenas bens jurídicos relevantes merecem tutela penal, ademais da sanção penal dirigir-se àqueles casos de intolerável agressão a esses bens jurídicos), ofensividade (somente devem ser criminalizadas as condutas que impeçam o convívio social), da exclusiva proteção dos bens jurídicos (a tutela deve ser voltada para bens jurídicos relevantes, ficando fora do seu alcance as questões morais, político-ideológicas ou religiosas) e da adequação social (mesmo sendo típica, se a conduta se adequa ao meio social perde esse caráter).
Claro que, qualificado pelas diversas categoria de direito subjetivo que visa proteger, o garantismo radica em bases bem mais amplas, quando se traduz num sistema de proteção a bens e direitos que se confunde com a feição mesma do Estado Democrático de Direito erigido na Constituição de 1988, de modo que não há qualquer impropriedade na referência a uma “teoria geral do garantismo”, na expressão feliz cunhada pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli, em sua festejada obra Direito e Razão – Teoria Geral do Garantismo Penal (edição espanhola – Madrid : Trotta, 1998).
Nos dias que correm e diante da necessidade inadiável de deter a corrupção que grassa, com fortes tintura de epidemia, em todo organismo estatal brasileiro, nas suas três esferas federativas, têm sido estabelecidas exceções, através de decisões judiciais e até de manifestações legislativas (a exemplo, neste caso, da Lei da Ficha Limpa), que vulneram o sistema de garantias penais e processuais contidas na Constituição, impondo mutações graves na forte tradição liberal do Judiciário brasileiro, a começar por seu órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Federal, tendência acentuada com o julgamento da rumorosa Ação Penal nº 470, também conhecida como "processo do Mensalão", ademais das posturas de defensores do “direito penal do inimigo” (formulação do professor alemão Günter Jakobs, na qual o Direito Penal abomina seus princípios fundamentais e vê o cidadão como meros inimigos do Estado) que, contrariando forte tradição minimalista da Corte, têm assumido alguns de seus ministros mais recentemente, sobretudo, nos processos vinculados à chamada “Operação Lava Jato”.
A tradição garantista do STF perde força diante do acirramento das questões colocadas pela atual conjuntura política que permeiam os casos citados e dão, combustível à enorme fogueira de paixões e ódios políticos, de interesses confessados ou inconfessáveis os mais diversos e de acendradas vaidades, o que torna muito difícil a fixação de um posicionamento do próprio Tribunal, cujas decisões baseadas nos votos individuais  de seus ministros impossibilitam serem elas frutos de construções coletivas e como tal incapazes de produzir uma ratio decidendi da Corte, contrariamente do que  ocorre com alguns modernos tribunais europeus. Nas democracias contemporâneas, são tarefas do Judiciário “frear o poder das maiorias políticas e fiscalizar os governantes, repor cotidianamente os sentidos da Constituição, amparar reivindicação de direitos e garantir a segurança jurídica” (Arantes, 2015, p.65). Neste sentido, o STF nada contra a corrente e lastimavelmente deixa à margem a cultura do manejo de instrumentos jurídicos voltados à defesa dos direitos e garantias fundamentais do cidadão e do seu acesso a um conjunto de bens jurídicos imprescindíveis aos indivíduos e à sociedade. Vejamos o que reserva 2016.

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