quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Artigo de Paulo Afonso Linhares

O PODER DAS CARTAS

Paulo Afonso Linhares

Na História do Brasil, que remonta cinco séculos de colonização europeia, as cartas têm representado um papel fundamental, a começar pela carta que o escrivão-mor da frota de Cabral, Pero Vaz de Caminha, enviou a el-Rei Dom Manuel, o Venturoso, comunicando em grandiloquente estilo o ‘achamento’ de novas terras, datada de Porto Seguro (hoje no Estado da Bahia), no dia 1 de maio de 1500, cujo ‘estafeta’ teria sido Gaspar de Lemos, comandante do navio de mantimentos da frota, designado a levar à pátria-mãe tão alvissareiras notícias. 
Claro, a despeito de Caminha considerar aquela missiva algo “inferior”, razão porque pedia desculpas ao ilustre destinatário, não deixou de interceder junto ao soberano português pela libertação de um genro, preso por assalto e agressão, o que é considerado como o marco inicial da prática de nepotismo no Brasil, nos exatos termos usados pelo arguto escrivão: “E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro — o que d'Ela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro, da vossa Ilha da Vera Cruz, hoje, sexta-feira, 1º dia de maio de 1500.”
Estava inaugurada a safadeza que perpassaria cinco séculos de patrimonialismo, de paternalismo, de confusão entre o que é público e o que deveria ser privado, de privilégios, de nepotismos e, por último e não menos importante (“last but not least”, na língua de Shakespeare),  a velha corrupção endêmica e sistêmica que marca a cruel hegemonia política, cultural e econômica da Casa-Grande que, para alguns maldosos ou ignorantes pura e simples, seria recentíssima invenção “desse povo do PT”.
Interessante é notar que, afora as cartas de alforria, todas as outras inventadas pelos  burocratas do Estado brasileiro, nestes quinhentos anos, refletem privilégios antirrepublicanos, a exemplo das cartas patentes, aqueles documentos emitidos pelo poder público que encerram privilégio, concessão ou autorização de funcionamento, lastimavelmente ainda presentes neste país. 
         No mais, o Brasil tem muitas outras cartas no seu sistema administrativo-legal: carta de abono, carta de adjudicação, carta de aviso, carta de citação, carta de consciência, carta de corso, carta de crédito, carta de fiança, carta de guia, carta de marca, carta de prego, carta de remessa, carta do abc, carta magna, carta precatória, carta régia, carta reversal, carta rogatória, cartas dimissórias, carta testamentária, carta testemunhável, carta topográfica etc. Se preocupe não, amigo(a) leitor(a): o bom Aurélio, no verbete “carta”, diz o que significa cada uma destas citadas e outras mais. Enfim, cartas e mais cartas nos costumes destes brasis, cartas à mancheia, para tomar por empréstimo conhecida expressão do nosso maior poeta, Castro Alves, acerca dos livros, os primos ricos das cartas, no seu poema “O livro e a América”:"Ó bendito o que semeia/ livros, livros à mancheia/ e manda o povo pensar./ E o livro caindo n'alma,/ é germe que faz a palma,/ é chuva que faz o mar"(...).
Doutra parte, no âmbito das relações privadas, sejam comerciais ou pessoais, as cartas sempre constituíram importantes ferramentas de comunicação, inclusive, as cartas de amor que o multicitado vate lusitano, Fernando Pessoa, na pele do seu heterônimo Álvaro de Campos, taxa de ridículas: “Todas as cartas de amor são/ Ridículas. /Não seriam cartas de amor se não fossem/ Ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor,/ Como as outras,/Ridículas.” Na contramão de Pessoa, é também bendito o que semeia cartas, mesmo que sejam apenas cartas de amor.
Aliás, nos últimos dois séculos se notabilizaram as cartas trocadas por reis, pensadores e literatos, que tiveram o importante papel de desvendar fatos históricos e estabelecer parâmetros de análise da vida e do pensamento dos missivistas. 
Entre escritores e pensadores de variadas extrações, essas cartas passaram à condição até de um novo estilo literário, o epistolar. As cartas trocadas, por exemplo,  entre  os filósofos Hannah Arendt e Martin Heidegger, de 1925 a 1975, até pelo inusitado de serem mentes brilhantes e opostas, além da componente amorosa, se tornaram um marco desse estilo. Noutro exemplo, tem-se a genialidade de um Câmara Cascudo e sua volumosa correspondência com pensadores do Brasil e do mundo. Enfim, a partir do século XVII, as epístolas de pessoas letradas passaram a revelar muito mais dos que até dizem suas obras publicadas em livros e escritos avulsos.
Fato é que, nos dias que correm, a Internet sepultou as velhas cartas de todos os matizes, substituídas que foram pelos velozes “posts”, sejam abertos, para conhecimento geral, ou no “privado” para atingir destinatários específicos, porém, quase sempre lavrados em linguagens que se afastam das regras da gramática normativa e criam novas - e nem sempre razoáveis! - possibilidades de comunicação escrita, sobretudo, com abreviações e ablações nem sempre compreensíveis para não iniciados.
No entanto, quando se pensava que as velhas cartas eram coisas do passado, eis que ressurgem com vigor no atual cenário político brasileiro: impedido de fazer comunicações diretas com seus acólitos, eis que encarcerado a cumprir pena numa enxovia estatal no Califado de Curitiba, o ex-presidente Lula resgata as cartas para expressar seu apoio a futuros postulantes de mandatos eletivos diversos, em textos concisos, despojados e singelos. É a voz das senzalas e mocambos a espargir resistência e vontade política.
Os destinatários dessas missivas, ressalte-se, assumem a condição legatários do capital político-eleitoral do líder petista que “surfa” em mais de 50% das intenções de voto na eleição presidencial brasileira de 2018, embora sabidamente não possa emplacar uma candidatura à presidência da República, eis que enquadrado nas restrições da Lei da Ficha Limpa que ele mesmo sancionou num impensado arroubo politicamente correto e se tornou, ele mesmo, anos depois,  “carta fora do baralho” nas eleições de 2018. 
Nesse embaralhamento estranho de valores que medram nestas planícies tupiniquins, enquanto o barco da nação soçobra perigosamente em oceano de crises, os dilemas do Encarcerado de Curitiba, em futuro próximo, talvez se enquadrem naquela assertiva  de Victor Hugo de que “as suas reflexões não eram pensamentos, o seu sono não era repouso. De dia não era um homem, de noite não era um homem adormecido”. 
E para saber o que acontecerá no próximo outubro, resta aos mortais comuns, a exemplo do que fazem alguns políticos e artistas famosos, conseguir uma cartomante que conheça bem a arte de “deitar as cartas”…

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