domingo, 1 de junho de 2014

Artigo de Paulo Afonso Linhares

COTA NEGRA NO BRASIL MULATO


Paulo Afonso Linhares

A maior parcela da enorme dívida social a ser resgatada, de algum modo e em determinado momento, pela sociedade brasileira, refere-se às sequelas ainda visíveis deixadas pelo regime escravagista que vigeu no Brasil por mais de três séculos. Arrancados de seus lares nas diversas regiões da África, pessoas eram feitas escravas e transportadas em condições sub-humanas nos terríveis navios negreiros para serem vendidas nos diversos portos do continente americano. Segundo afirma Beatriz Brusantin et alii, “[...] A história da Abolição da escravatura no Brasil foi uma luta longa, complexa e tortuosa apoiada por uma nação de espírito escravista e pelo regime imperial que buscava preservar os interesses das elites e manter a exploração do trabalho escravo. Por oitenta anos, o embate foi parcialmente dedicado ao tráfico entre a África e o Brasil, um negócio vantajoso e lucrativo, principalmente após a promulgação de uma lei, em 1831, que proibia o comércio intercontinental de escravos. Entretanto, no período entre 1831 e 1850, nunca se traficou tanto no Brasil” (disp.: http://bit.ly/1nM6TkD. Acesso: 20mai2014).  Com a implantação do novo Estado brasileiro em 1822, a ordem constitucional erigida com a Carta de 1824 lastimavelmente recepcionou a escravidão, a despeito de poderosas opiniões contrárias, como foi o caso de José Bonifácio de Andrada e Silva, prestigiado com a designação de “patriarca da independência”. Nos sessenta e seis anos do regime imperial, foi crescente o repúdio à escravatura, com o surgimento de várias iniciativas para mitiga-la em vários aspectos ou mesmo para sua abolição.

O movimento abolicionista se fez gradativamente com a imposição de ações afirmativas tímidas e consectárias das pressões que, a partir da metade do século XIX, passou a sofrer o Estado brasileiro, quando o seu regime escravagista passou a ser contestado pela Inglaterra. Ressalte-se que a essa ação política inglesa nada tinha de humanitária, porquanto o seu Interesse era a ampliação do seu mercado consumidor no Brasil e no mundo, razão porque oParlamento Inglês aprovou uma lei chamada de Bill Aberdeen (1845), que proibia o tráfico de escravos e permitia à sua Marinha Real fazer abordagemaprisionar quaisquer navios de países que faziam esta prática.

Cedendo às pressões da Coroa britânica, cinco anos depois o Brasil aprovou a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, que proibia o tráfico negreiro da África para o Brasil sem, contudo, abolir a infâmia que era a escravidão. Em ritmo de lentidão e gradualismo, somente em 28 de setembro de 1871 seriaaprovada pelo Paramento brasileiro a Lei do Ventre Livreque dava liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir daquela data. Outra ação antiescravagista de relevo, mas, ainda na linha do "para inglês ver", foi a promulgação, no ano de 1885, da Lei dos Sexagenários, que previa a alforria imediata de todo o escravo que completasse sessenta anos, merecendo observar que, por volta de 1879, a expectativa de vida à época do brasileiro não escravo era de 27 ano e, pasmem, do escravo era de apenas 19 anos, segundo estudo realizado por Stuart B. Schwartz (in Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo: Companhia das Letras, 1988). Somente no final do século XIXquando a escravidão já era proibida mundialmente e a patética monarquia brasileira estava nos estertores, foi que o Brasil  decretou a sua abolição,  em 13 de maio de 1888, com a promulgação da Lei Áurea, pela regente Princesa Isabel. 

O pior foi que, a despeito de conferir a liberdade jurídica aos escravos, a Lei Áurea nenhuma garantia trouxe para essa parcela da população extremamente pobre e vulnerável; sem moradia, analfabetos e sem nenhuma assistência do Estado, muitos negros passaram por enormes dificuldades após a liberdade, sobretudo porque não conseguiam trabalho, ademais de sofrerem preconceito e discriminação racial. Abolicionistas do porte de Joaquim Nabuco e de André Rebouças defendiam a distribuição de glebas de terras rurais aos negros, pelo Estado brasileiro. Nada foi feito. A grande maioria dos negros passou a ter péssimas condições de vida sem que o Estado brasileiro, nestes 126 anos, tenha lançado mão de ações afirmativas eficientes para reverter essa situação. E agora aparece mais, em forma de cota. Neste país, cota de qualquer natureza é sinônimo de confusão e gera renhidos embates.


Com efeito, recentemente o Senado aprovou o projeto que destina 20% das vagas em concursos públicos para negros. De iniciativa do Poder Executivo e igualmente já aprovado pela Câmara Federal, o texto será encaminhado à sanção da presidente Dilma Rousseff. Em resumo, essa lei garantirá, por 10 anos, que candidatos negros e pardos tenham cotas em concursos de órgãos da administração pública federal, autarquias, fundações, empresas públicas, e sociedades de economia mista controladas pela União. Futuramente outras esferas federativas – Estados e Municípios - certamente vão adotar algo semelhante. Em suma, não deixa de ser uma boa iniciativa, embora essa ação afirmativa possa ser alvo de enormes polêmicas, sobretudo, quando se tratar de estabelecer quem pode ser considerado “negro” ou “pardo” para efeito dessa lei, neste Brasil mulato. E como não poderia ser de outro modo, terá como desaguadouro o Poder Judiciário que, neste país, costuma fazer do branco preto e do quadrado redondo. Ou, na língua de Cícero, tão ao gosto das mulheres e homens de capas pretas: [...] facit de albo nigrum et de quadrato rotundum. Assim, é aguardar para ver no que dará esse angu.

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