O SILÊNCIO DOS JUSTOS
Paulo Afonso Linhares
Em plena ditadura (1964-1985) erigiu-se no Brasil a teoria de que somente provas robustas podem basear uma condenação criminal. O mais interessante foi que essa teoria foi construída, sobretudo, a partir da jurisprudência do Superior Tribunal Militar, uma corte composta de quinze Ministros nomeados pelo Presidente da República, após aprovação pelo Senado Federal, sendo cargos vitalícios. Das quinze cadeiras, três são escolhidas dentre oficiais-generais da Marinha, quatro dentre oficiais-generais do Exército, três dentre oficiais-generais da Aeronáutica - todos da ativa e do posto mais elevado da carreira - e cinco dentre civis. Foram, pois, os juízes (Ministros) do STM que passaram a exigir prova robusta, cabal, da conduta criminosa para condenar o agente.
Com a Constituição de 1988, a sociedade brasileira se reencontrou com a democracia, ademais da gama de direitos e garantias fundamentais do cidadão que nela restaram consignados, alguns dos quais se referem exclusivamente à questão da liberdade sob a ótica penal e têm status de princípio, como é o caso do contraditório e ampla defesa, e da cláusula do devido processo legal (due processo of law), somente para citar os mais conhecidos. Entretanto, o que sem observa no Brasil é a retração desses direitos e garantias fundamentais, a partir de iniciativas tanto legais quanto mesmo da jurisprudência que emana dos tribunais pátrios, em especial aquela advinda do Supremo Tribunal Federal.
No julgamento do caso do “Mensalão”, pelo Supremo Tribunal Federal, ficou mais do que evidenciada a precarização de alguns direitos, sem o que dificilmente haveria condenação da maioria dos 37 réus arrolados na denúncia pela Procuradoria Geral da República, sobretudo daquele que, por absurdo, passou a ser o alvo da sanha da maioria conservadora daquela Corte. O relator do caso (Ação Penal nº 470, que é como o STF orientou seus repórteres e redatores a não usarem o termo “mensalão” na divulgação de informações durante o julgamento desse processo), o ministro Joaquim Barbosa, especialmente no julgamento mais esperado que foi o do ex-ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu, e diante das “provas tênues” contra ele (segundo palavras do próprio Procurador Geral da República, José Roberto Gurgel), adotou uma linha de raciocínio baseada na polêmica e pouco usual “teoria do domínio do fato”.
Por essa teoria, pouquíssimo aceita no Direito Processual Penal, onde se considera autor quem tem o controle final do fato e decide sobre a prática, circunstância e interrupção do crime. Assim, não é necessário que haja prova direta da participação do agente no fato tido como criminoso, mas, tão somente que ele ocupe uma posição hierárquica superior para ser acusado e condenado por ato criminoso cometido por pessoa ocupante de nível hierárquico inferior, na estrutura da empresa ou de órgão público. A propósito, o ministro Lewandovski exemplificou essa teoria com o exemplo de um mergulhador da Petrobrás que coloca, criminosamente, uma bomba num duto de uma estação petrolífera. Por absurdo que possa parecer, o presidente da Petrobrás poderia, neste caso, ser indiciado e condenado por crime de sabotagem. É impossível que um gestor público ou de empresa privada tenha controle sobre os eventos que ocorrem intramuros.
Claro que o julgamento da Ação nº 470, pelo STF, é preocupante não apenas pelo cunho político que transpareceu, mas, sobretudo, pela mudança de um paradigma fundamental em matéria de provas: a não exigência de prova robusta e indubitável para condenação criminal, mas, apenas as tais “provas tênues” do dr. Roberto Gurgel, que nada mais são que meras suposições intelectualmente encadeadas como supedâneo de uma condenação criminal. “Provas tênues” são provas nenhumas, inservíveis para condenação de qualquer pessoa acusada da prática de crime; são como fumaça a se esvair no ar. A sua adoção pela Corte maior do Brasil denota o gravíssimo nível de precarização que atinge diversas áreas do Direito brasileiro. Inegavelmente, um enorme e lastimável retrocesso tocante aos direitos e garantias fundamentais do cidadão, ademais de projetar um cenário que bem se adequa àquelas palavras do pastor Martin Luther King: "O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética... O que me preocupa é o silêncio dos justos".
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