domingo, 29 de junho de 2014

Artigo de Paulo Afonso Linhares

O LEGADO DO CORVO

Paulo Afonso Linhares

Por mais de três décadas teve destaque na cena política brasileira uma das personagens mais controvertidas e não menos geniais da história deste país: Carlos Frederico Werneck de Lacerda, chamado Carlos Lacerda ou simplesmente Lacerda; por seu visual soturno, as roupas negras, os olhos fundos sempre guarnecidos por pesados óculos aro de tartaruga no rosto sempre crispado, o gestual ríspido e inquieto, sobretudo, pelo majestoso domínio de candente oratória, seus milhares de desafetos passaram a chamá-lo apenas de "Corvo", não apenas pelo aspecto taciturno, mas, também, pelo espírito atilado e os raciocínios velozes e cortantes, emoldurados numa luminosa torrente de palavras a metralhar impiedosamente múltiplos alvos, inclusive,  algumas vezes na forma de "fogo amigo". Para ele, as palavras eram lâminas a dilacerar reputações em renhidos combates verbais nas tribunas parlamentares, bem assim  através da imprensa escrita ou falada, onde usava e abusava de recursos retóricos tão impactantes que fariam corar os mais afamados dos filósofos sofistas gregos de antanho, a exemplo de Protágoras, Górgias de Leontini ou Hípias. Impulsivo e desprovido de tolerância, Lacerda não conhecia as meias-palavras, os meios-termos ou meios-tons; tudo nele cheirava a extremos.

A formação inicial de Lacerda (era filho do político, tribuno e escritor Maurício de Lacerda) foi no campo da esquerda, sob forte influência familiar, porém, tornar-se-ia passos adiante o corifeu da direita golpista encastelada na União Democrática Nacional (UDN), a combater tudo que tivesse pertinência com Getúlio Vargas e seu paradoxal legado político bifronte: o Partido Social Democrático (PSD), conservador e representativo das oligarquias agrárias; e o Partido  Trabalhista Brasileiro (PTB), de caráter urbano e que congregava as bases do sindicalismo oficioso. Em 1954, tanto Lacerda e seus acólitos fustigaram um Vargas já cansado de muitas guerras que este, presidente democraticamente eleito e no exercício da magistratura suprema da nação, saiu "da vida para entrar na História", com um tiro no próprio coração.

E a tragédia getuliana não deteve o Corvo e seus asseclas: tudo tramaram para que dez anos depois, em 1964, o herdeiro de Getúlio, João Goulart, fosse - apeado da presidência da República, mergulhando o Brasil numa ditadura que se prolongaria por mais de duas décadas e que, por obra do efeito termidoriano próprio de golpes de Estado dessa feição, o próprio Lacerda foi cassado e posto fora da política pelos militares seus antigos aliados (não seria ele uma das "vivandeiras alvoroçadas a rondar os bivaques dos granadeiros", segundo imagem forjada pelo marechal Castelo Branco?). O golpista derruba-presidentes provou de dose cavalar do veneno espargira discurso a discurso, artigo a artigo panfletário de jornal; cada petardo que arremessou contra as instituições republicanas lhe foi devolvido pelos seus ex-amigos, então donos do poder, cobrindo-o com o manto sombrio do ostracismo e fazendo com que precocemente viesse a perecer.

Com efeito, trinta e sete anos após a morte de Lacerda, aos 63 anos,  o seu legado está bem evidenciado  em várias das correntes políticas e importantes setores da imprensa que hoje fazem oposição aos governos petistas de Lula e de Dilma Rousseff. O estilo é o mesmo, a intolerância idem. Falta-lhes o talento, a inteligência e a genial retórica do Corvo, o que não os impede de infligir constantes reveses aos seus alvos, a exemplo dos ataques que vêm sofrendo a própria presidenta Dilma (recorde-se do recente "Dilma vá tomar no..." gritado por vips e socialaites no luxuoso camarote do Banco Itaú, na abertura da Copa realizada no estádio Itaquerão), o seu governo  e empresas como a Petrobrás, alguns até justos e fundados, mas, outros absurdos, histéricos, descabidos e até criminosos. Mais estranho e paradoxal é que o antigo Partido Comunista Brasileiro, hoje denominado Partido Popular Socialista (PPS), tornou-se o mais agressivo dos herdeiros de Lacerda. Aliás, isto somente vem a provar, como ocorreu com o Corvo, que o esquerdista que "bebe o vinho do padre" da direita é mais perigoso que buchada azeda.

A moda dos corvinhos, inclusive aqueles travestidos de tucanos, é falar mal dos gastos da Copa, depois de apostarem todas as suas fichas furadas que esse evento seria uma enorme fracasso. Até agora, fora a dentada que o jumento Suárez deu no ombro do italiano Chiellini, tudo na Copa FIFA tem sido retumbante sucesso; tudo funcionando como relógios suíços, no ponto e vírgula, embora seja absurdo  computar ao governo Dilma todos os acertos e ganhos, pois os governos estaduais e municipais das cidades sedes têm seu mérito, inclusive, malgré tout, o governo de Rosalba Ciarlini. Aliás, querer extrair dividendos de um fracasso nacional de todos os órgãos envolvidos na realização da Copa 2014, é uma péssima aposta bem no estilo lacerdista, bem no estilo atentado da Rua Toneleiro, sem qualquer exagero.


Felizmente, até agora não é perceptível na oposição ao governo Dilma a sanha golpista que passou a ser um marca do udenismo, mormente no viés lacerdista. Uma derrota nas eleições deste 2014  das forças anti-Dilma pode atiçar essa faceta golpista. Pouco se pode esperar de uma oposição incompetente e desqualificada que sequer logrou construir um discurso competente na exploração das falhas do governo, sobretudo, nos evidentes fiascos da atual política econômica. Vale esperar os próximos capítulos dessa novela eleitoral à sombra do Corvo, que nada tem a ver com  Edgar Allan Poe.

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