segunda-feira, 6 de abril de 2015

Artigo de Paulo Afonso Linhares

"CARNE FRESCA" APENAS...

Paulo Afonso Linhares

Os ideais humanísticos são um frágil barquinho quase sempre a  soçobrar no mar revolto do obscurantismo e da barbárie. Com efeito,  o caminho para a luz - o enlightenment  no sentido filosófico - passa por sombras tenebrosas e tormentos que duram eternidades. Triste é que, por mais avanços que que hajam, sempre ronda poderoso o retrocesso à escuridão. O mais grave é que, a despeito de luz e sombra serem categorias perceptíveis pelos sentidos, findam sendo elas instâncias de relatividade: assim, para alguns o que é luz não passa de mera sombra e vice-versa. Enfim, nos tempos que correm, a barbárie arma-se de discursos tão consistentes quanto aquilo que se entende por "civilização". As suas razões de defesa da responsabilização penal de adolescentes maiores de 16 e menores de 18 anos, por exemplo, em nada primam pela racionalidade científica ou por apreciações minimamente referidas à ética. É somente ódio raivoso e preconceito ideológico.

É nessa "aba" que deve ser situada a tormentosa discussão acerca da diminuição da maioridade penal no Brasil, em vista da recente aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados da PEC 171/2003, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos, possibilitando, assim, que possa ser votada em plenário. Aliás, de nada valeu o poderoso argumento de que essa emenda teria o óbice intransponível da inconstitucionalidade por violação de cláusula pétrea, porquanto consideram a regra dos 18 anos uma garantia individual e, nesta condição, constitui disposição imutável da Carta Política. Parece que a inspiração da maioria dos deputados com assento na CCJ é a filosofia rasteira e obscurantista da  jornalista Rachel Sheherazade, do sítio Jovem Pan-Uol que, na suas canhestra defesa da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, argumenta: "Os opositores da redução da maioridade penal alegam que a medida não deverá acabar com a violência. Mas, esse não é o objetivo da proposta. Violência não é causa. É consequência. E leis não servem para evitar crimes, mas para puni-los. Simples assim." Uma pérola. Sem dúvida, o velho inquisidor Torquemada, de triste memória, coraria com a estupidez dessa radical defensora do retrocesso e do obscurantismo.

Ressalte-se que a fixação da maioridade penal aos 18 anos obedece a razões de cujo psicossocial e biomédico: somente nessa idade a pessoa pode ter completada a evolução biopsicológica, de modo a ser considerada como ser adulta. Assim, a escolha de legisladores de todo o mundo civilizado pela idade de 18 anos como parâmetro mínimo da responsabilidade penal, não se trata de mero palpite, mas, uma imposição de cunho científico e até ético. Por isto foi que na culta e desenvolvida Alemanha, nos anos '90, a maioridade penal baixada para 16 anos voltou aos dezoito, sobretudo, porque em nada diminuiu a violência urbana, ademais de outros enormes malefícios que acarretou essa redução. Por absurdo, no Brasil atual a redução da maioridade penal é vista por algum como panaceia para todos os males da violência urbana e da criminalidade.

Os defensores da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, no Brasil, ancoram seus argumentos em rematada falácias, sobretudo quando reclamam da impunidade dos menores de 18 anos que praticam atos que violam a integridade, a liberdade e o patrimônio de outrem. Ora, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a aplicação de "medidas sócio-educativas" àqueles que, menores de 12 a 16 anos, praticam "atos infracionais". Claro, com tais eufemismos quis o legislador dar tratamento diferenciado às crianças/adolescentes que violam certos bens juridicamente protegidos, a exemplo dos maiores de 18 anos, porém, com consequências diversas: estes praticam "crimes" e aqueles apenas "atos infracionais", que são assemelhados, todavia, objeto de tratamentos diferenciados.

Pelos argumentos que expõem os defensores da redução da maioridade penal, tem-se a impressão que toda a violência que grassa na sociedade brasileira é praticada por jovens entre 16 e 18 anos. Com efeito, mesmo que numa apreciação bem empírica, é possível afirmar que apenas cerca de um por cento dos atos violentos de violação à direitos que ocorrem podem ser imputados a pessoas dessa faixa etária. Assim, achar que o problema da criminalidade será resolvido com essa redução da maioridade penal, não deixa de ser rematado absurdo. A propósito, o sábio J-J Rousseau, na sua obra Emílio ou a educação, defende que a criança deve ter liberdade para viver e aproveitar cada fase da sua vida em seu devido tempo e não ser considerada um adulto em miniatura. Mais grave seria considerá-la igual a um adulto, como fazem os defensores da redução da maioridade penal.


Ao contrário, certamente agravará a situação caótica dos sistema prisional brasileiro que, em se reduzindo a maioridade penal para 16 anos, será impactado pelo considerável contingente (nunca inferior a 25%) de novos apenados que ingressará num sistema prisional em antiga, profunda e dificilmente solucionável crise. Aliás, o retrocesso e a perversidade embutidos na proposta de redução da maioridade penal de 18 para 16 anos reside na possibilidade de serem colocadas crianças e adolescentes em mesmo ambiente prisional ocupado por adultos. Nesse rumo, as possibilidades sócio-educativas desses cidadãos ainda em estado larvar - crianças e adolescentes  - se igualam, no máximo, a zero. Lastimavelmente, reduzida que seja a maioridade penal para 16 anos, no Brasil,  crianças e adolescentes serão tratados pelos adultos - apenados ou carcereiros - como "carne fresca" apenas... "Simples assim", como diz Sheherazade, essa aprendiz de torquemada e vanguardeira do atraso de mil e uma noite. Cáspite!

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