"CARNE
FRESCA" APENAS...
Paulo Afonso Linhares
Os ideais humanísticos são um frágil barquinho quase sempre a soçobrar
no mar revolto do obscurantismo e da barbárie.
Com efeito, o caminho para a luz - o enlightenment no sentido filosófico - passa por sombras
tenebrosas e tormentos que duram eternidades. Triste é
que, por mais avanços que que hajam, sempre ronda
poderoso o retrocesso à escuridão. O mais grave é
que, a despeito de luz e sombra serem
categorias perceptíveis
pelos sentidos, findam sendo elas instâncias
de relatividade: assim, para alguns o que é luz
não
passa de mera sombra e vice-versa. Enfim, nos tempos que correm, a barbárie arma-se de discursos tão consistentes quanto aquilo que se
entende por "civilização".
As suas razões
de defesa da responsabilização
penal de adolescentes maiores de 16 e menores de 18 anos, por exemplo, em nada
primam pela racionalidade científica
ou por apreciações
minimamente referidas à ética.
É somente
ódio
raivoso e preconceito ideológico.
É
nessa "aba" que deve ser
situada a tormentosa discussão
acerca da diminuição
da maioridade penal no Brasil, em vista da recente aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados da PEC 171/2003,
que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos, possibilitando, assim, que
possa ser votada em plenário.
Aliás,
de nada valeu o poderoso argumento de que essa emenda teria o óbice intransponível da inconstitucionalidade por violação de cláusula pétrea, porquanto consideram a
regra dos 18 anos uma garantia individual
e, nesta condição, constitui disposição
imutável
da Carta Política.
Parece que a inspiração
da maioria dos deputados com assento na CCJ é a filosofia rasteira e obscurantista
da jornalista Rachel
Sheherazade, do
sítio
Jovem Pan-Uol que,
na suas canhestra defesa da redução da maioridade
penal de 18 para 16 anos,
argumenta: "Os opositores da redução da maioridade penal alegam que a medida não deverá
acabar com a violência. Mas, esse não é
o objetivo da proposta. Violência não
é causa. É consequência. E leis não servem para evitar crimes, mas para
puni-los. Simples assim."
Uma pérola.
Sem dúvida,
o velho inquisidor Torquemada, de triste memória, coraria com a estupidez dessa
radical defensora do retrocesso e do obscurantismo.
Ressalte-se que a fixação da maioridade penal aos 18 anos
obedece a razões
de cujo psicossocial e biomédico:
somente nessa idade a pessoa pode ter completada a evolução biopsicológica, de modo a ser considerada como
ser adulta. Assim, a escolha de legisladores de todo o mundo civilizado pela
idade de 18 anos como parâmetro
mínimo
da responsabilidade penal, não
se trata de mero palpite, mas, uma imposição
de cunho científico
e até ético.
Por isto foi que na culta e desenvolvida Alemanha, nos anos '90, a maioridade
penal baixada para 16 anos voltou aos dezoito, sobretudo, porque em nada
diminuiu a violência
urbana, ademais de outros enormes malefícios
que acarretou essa redução.
Por absurdo, no Brasil atual a redução
da maioridade penal é vista
por algum como panaceia para todos os males da violência urbana e da criminalidade.
Os defensores da redução da maioridade penal de 18 para 16
anos, no Brasil, ancoram seus argumentos em rematada falácias, sobretudo quando reclamam da
impunidade dos menores de 18 anos que praticam atos que violam a integridade, a
liberdade e o patrimônio
de outrem. Ora, o Estatuto da Criança
e do Adolescente prevê a
aplicação
de "medidas sócio-educativas"
àqueles
que, menores de 12 a 16 anos, praticam "atos infracionais". Claro,
com tais eufemismos quis o legislador dar tratamento diferenciado às crianças/adolescentes que violam certos bens
juridicamente protegidos, a exemplo dos maiores de 18 anos, porém, com consequências diversas: estes praticam
"crimes" e aqueles apenas "atos infracionais", que são assemelhados, todavia, objeto de
tratamentos diferenciados.
Pelos argumentos que expõem os defensores da redução da maioridade penal, tem-se a
impressão
que toda a violência
que grassa na sociedade brasileira é praticada
por jovens entre 16 e 18 anos. Com efeito, mesmo que numa apreciação bem empírica, é possível afirmar que apenas cerca de um por
cento dos atos violentos de violação
à direitos
que ocorrem podem ser imputados a pessoas dessa faixa etária. Assim, achar que o problema da
criminalidade será resolvido
com essa redução
da maioridade penal, não
deixa de ser rematado absurdo. A propósito,
o sábio
J-J Rousseau, na sua obra Emílio
ou a educação,
defende que a criança
deve ter liberdade para viver e aproveitar cada fase da sua vida
em seu devido tempo e não ser considerada
um adulto em miniatura. Mais
grave seria considerá-la
igual a um adulto, como fazem os defensores da redução da maioridade penal.
Ao
contrário,
certamente agravará a
situação
caótica
dos sistema prisional brasileiro que, em se reduzindo a maioridade penal para
16 anos, será impactado
pelo considerável
contingente (nunca inferior a 25%) de novos apenados que ingressará
num sistema prisional em antiga,
profunda e dificilmente solucionável
crise. Aliás,
o retrocesso e a perversidade embutidos na proposta de redução da maioridade penal de 18 para 16
anos reside na possibilidade de serem colocadas crianças e adolescentes em mesmo ambiente
prisional ocupado por adultos. Nesse rumo, as possibilidades sócio-educativas desses cidadãos ainda em estado larvar - crianças e adolescentes - se igualam, no máximo, a zero. Lastimavelmente,
reduzida que seja a maioridade penal para 16 anos, no Brasil, crianças
e adolescentes serão
tratados pelos adultos - apenados ou carcereiros - como "carne fresca"
apenas... "Simples assim", como diz Sheherazade, essa aprendiz de torquemada e
vanguardeira do atraso de mil e uma noite. Cáspite!
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