sábado, 21 de janeiro de 2017

Artigo de Paulo Afonso Linhares

DE TRAGÉDIA E TOGAS

Paulo Afonso Linhares

Comecei a escrever algo sobre as declarações do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, deslumbrado com a constatação de uma palestrante naquele fórum mundial de palpites e futricas globalizados de que no Brasil, de hoje, já não se fala mais em generais, brigadeiros ou almirantes, mas, de juízes e procuradores. Vi uma satisfação pueril no riso gratuito de Janot, por algo que é perceptível há tempos e tem sido objeto de detidas análises, inclusive de nossa parte, noutros escritos já publicados: para usar conhecida frase de Cícero, aqui as armas cederam passo às togas (cedant arma togae). 
Algumas linhas já engendradas, todas as mídias anunciaram com grande destaque a notícia da trágica morte do ministro Teori Albino Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, em desastre de um avião que o conduzia a Parati, no Rio de Janeiro. Uma bomba de muito megatons explodiu na cena político-institucional brasileira, porquanto era o ministro Teori relator do "Caso Lava Jato" naquela Corte, ou seja, por sua caneta passariam várias decisões importantes sobre a participação de políticos poderosos, com foro privilegiado no STF, em esquemas criminosos de corrupção e, também, aquelas referentes aos chamados “acordos de leniência” celebrados por empresas envolvidas em esquemas de corrupção.
Jurista brilhante e magistrado de carreira com reputação extreme de máculas, Zavascki mobilizou uma força-tarefa de auxiliares para, no recesso de fim de ano, aprontar o seu relatório sobre as delações de executivos da empresa Odebrecht que envolveriam muitos deputados e senadores. Com isto, ele poderia homologar ou não essas delações e posteriormente caberia à Procuradoria Geral da República oferecer ou não as denúncias que entendesse adequadas. 
O ministro Teori não homologou a delação-bomba da Odebrecht, pois a fatalidade se abateu sobre ele com grande rudeza, ceifando-lhe a vida, além de deixar um rastro de inúmeras especulações acerca das causas do acidente, em sua esmagadora maioria tendentes às teses conspiratórias, ou seja, que a morte do ministro do STF não fora obra do acaso, mas, fruto de alguma trama urdida tendo como pano de fundo a Operação Lava Jato no STF. No Brasil inteiro é o que mais se fala a partir do anúncio do desastre pelas mídias, na tarde da quinta-feira, 19 de janeiro de 2017. Essa tragédia, qualquer que tenha sido sua origem, tem potencial para trazer impactos importantes nos acontecimentos do futuro próximo na política brasileira, mormente se restar comprovado que a queda do avião não foi obra do acaso, mas, algo planejado e executado com o desiderato de assassinar o ministro relator da Lava Jato. 
Foi assim, por exemplo, que na noite de 18 de setembro de 1961, o Secretário-Geral das Nações Unidas, o sueco Dag Hammarskjold, morreu junto a outras 15 pessoas em ainda não bem explicado acidente aéreo, quando tentava evitar que eclodisse uma guerra civil na República do Congo e afastar o envolvimento das tropas da ONU no conflito que se aproximava. Nesse caso, houve fortes indícios de que o avião foi sabotado ou abatido. 
No Brasil, ainda na linha das teorias conspiratórias, tem-se o acidente aéreo que vitimou o Marechal Castelo Branco e outras quatro pessoas. A versão oficial foi a de que o ex-presidente Castello Branco falecera em acidente aeronáutico quando viajava numa aeronave do Governo do Estado do Ceará, um Piper Aztec, cuja matrícula era PP-ETT, no dia 18 de julho de 1967, que foi atingido por um caça da Força Aérea Brasileira, um Lockheed TF-33. A teoria de mero acidente persiste até hoje, embora ninguém acredite nela: o primeiro presidente do ciclo da ditadura militar implantada em 1964 mesmo fora do governo era uma pedra no caminho do grupo da chamada "linha dura" das Forças Armadas, que não queria devolver o poder aos civis, como defendia Castello Branco. Até hoje existem fundadas suspeitas de assassinato político do ex-presidente. De se esperar que, nesse caso do acidente que vitimou Teori Zavascki, tudo seja esclarecido e que reste comprovado que o avião não caiu por ato de sabotagem ou outra causa assemelhada. Do contrário, será péssimo para este país.
O mais visível dos impactos da morte do ministro Zavascki é relativo à própria Operação Lava Jato no STF, que sofrerá uma paralisação com inequívocos prejuízos à conclusão dos casos sub judice, com reflexos, ainda, nos feitos judiciais que tramitam na 7ª Vara Federal de Curitiba, a cargo do juiz Sérgio Moro: as delações dos réus da Lava Jato presos em Curitiba que envolvam membros do Congresso Nacional deslocam para o STF o processo homologatório dessas que, até agora, estavam sob a relatoria do ministro Teori Zavascki.
Em linguagem simples, sem essas homologações de nada valem as delações: o juiz Moro, assim, tinha sempre que esperar as decisões homologatórias do ministro relator no STF. Quem será o novo relator da Lava Jato no STF? Pelo regimento da Corte, o ministro que for nomeado para sua vaga. Nomeação a ser feita pelo presidente Temer, obedecidas às formalidades legais e constitucionais. Enfim, o novo relator da Lava Jato será uma escolha solitária do presidente da República que, coincidentemente, tem muitos amigos e correligionários, quando não ele próprio, citados nas delações da turma do grupo Odebrecht. Pano rápido.
A boataria voará alto em torno desse episódio triste, mas, seguramente tanto o CENIPA, órgão da Aeronáutica que promove as investigações de acidentes aéreos, quanto mesmo a Polícia Federal, certamente irão fundo para descobrir o que efetivamente houve nesse voo para a morte em que cinco vidas foram perdidas e no qual não houve sobrevivente para "contar a história", fornecer algumas pistas acerca do que se passou, porquanto, embora o avião fosse equipado com sofisticados equipamentos de navegação, estavam a voar sem utilizá-los, pelo método manual, já que o pequeno aeroporto de Parati não dispõe de instrumentos mais precisos de monitoramento e de auxílio às manobras de aproximação e pouso da aeronave.
Quem teria interesse na morte de Zavascki? Bobagem de idiotas de todos os calibres, que em tudo veem uma conspiração. Ora, afora uma paralização de poucos tempo, em razão da morte do relator, o processo no STF continuará com outro ministro que poderá até ser mais duro que o antecessor. Embora sem maior sustentação essa tese boba, corre-se o risco de uma utilização maliciosa do episódio para deflagrar e justificar ações políticas até incompatíveis com o espírito republicano e as instituições democráticas.
A propósito, vale recordar que, no dia 28 de junho de 1914, em Sarajevo, Bósnia, o duplo assassinato do herdeiro do trono austro-húngaro, arquiduque Franz Ferdinand e sua esposa Sofia, por um nacionalista sérvio, de nome Gavrilo Prinzip, serviu de pretexto para o início da Primeira Guerra Mundial, em que morreram mais de 10 milhões de pessoas e mudou definitivamente os destinos e nações e pessoas, além de oferecer a motivação para que eclodisse, em exatas duas décadas do seu término, o mais sangrento conflito mundial que, de 1939 e 1945, deixou entre 60 e 70 milhões de mortos, segundo afirma Donald Sommerville, na obra The Complete Illustrated History of World War Two: An Authoritative Account of the Deadliest Conflict in Human History with Analysis of Decisive Encounters and Landmark Engagements. Lorenz Books [S.l.], 14 de dezembro de 2008. p. 5. ISBN 0754818985.
Um exemplo brasileiro desses pretextos é o famoso Plano Cohen, originado de um relatório escrito por um membro do Serviço Secreto do Exército, o capitão Olímpio Mourão Filho, também membro Partido Integralista, de ultradireita, com intuito de simulação de como se daria uma revolução comunista no Brasil. Getúlio Vargas, sagaz político, querendo ‘melar’ as eleições presidenciais marcadas para 1938, cujos candidatos eram José Américo de Almeida e Armando de Sales Oliveira, utilizou a bobagem engendrada por Mourão Filho (sim, aquele mesmo que, já general e ainda um empedernido ultradireitista, antecipou a ‘Revolução’ de 1964, quando marchou de Minas Gerais para Brasília) para dar um golpe de Estado de inspiração nazi-fascista, o Estado Novo (traduzido na Constituição outorgada de 1937, dita “A Polaca”), um pesadelo autoritário e truculento que durou terríveis 8 anos (1937-1945).
De se esperar, assim, que o trágico desaparecimento do ministro Zavascki não sirva de pretexto para aventuras políticas democraticidas e antirrepublicanas ou que, no mínimo, fragilize ainda mais as instituições jurídico-políticas brasileiras. Pelas características do sinistro aviatório, grosso modo alguns especialistas em navegação aérea e desastres decorrentes entendem que a queda do avião em que viajava o ministro do STF teria acontecido por falha humana ou mecânica no processo de aproximação da pista de pouso que distava apenas dois quilômetros à frente.
Em caso recente, aliás, muito se especulou sobre o desastre aéreo que vitimou o candidato à presidência da República, Eduardo Campo, ocorrido em Santos, no ano de 2014. As conclusões foram de falha humana no processo de aproximação do aeroporto de destino, inclusive em face do excesso de horas trabalhadas pelo piloto, o que foi uma ducha fria nos boatos de que teria havido uma conspiração para matar o jovem ex-governador de Pernambuco e uma das mais sólidas lideranças políticas em ascensão, naquele momento, no Brasil.
Doutra parte, a ‘revelação’ que o procurador geral da República foi buscar em Davos tem sido tema recorrente de diversos artigos que escrevemos e publicamos nos últimos anos, centrados na tese de que as corporações jurídicas, em especial a Magistratura e o Ministério Público federais, fazem nesta quadra da vida político institucional do Brasil, papel assemelhado aos que os oficiais das forças armadas fizeram em passado recente, sobretudo, por ocasião da ditadura militar (1964-1985); estes como poder das armas, aqueles com o poder das togas. Seriam, juízes e promotores os “tenentes de toga” a que aludiu o cientista político Luiz Werneck Vianna, em recente entrevista de grande repercussão dada ao jornal O Estado de São Paulo, já referida, também, noutro artigo que publicamos há poucos dias (Política: as máscaras de cada um).
Mal comparando, um ministro do Supremo Tribunal Federal exerce um munus que se equipara aos dos oficiais superiores de último grau em tempo de paz das Forças Armadas (General-de-Exército, Tenente-Brigadeiro e Almirante-de-Esquadra). Com uma diferença: depois da Constituição de 1988, enquanto os militares se voltaram para a profissionalização das organizações a que servem, a exemplo do que fazem seus colegas dos países desenvolvidos após o fim da Guerra Fria, e se internaram mais no cotidiano dos quartéis, ocorreu um enorme empoderamento da magistratura nacional, que passou a dominar o cenário político e a influir decisivamente na condução dos negócios de Estado, enfim, a estabelecer a pauta política do país, fenômeno que para alguns seria um forte indício de que o Brasil já viveria aquilo que os estudiosos dos temas político-institucionais taxam como ditadura judiciária.
É bem verdade que o paternalismo entranhado no ethos da sociedade brasileira ajuda muito nesta postura: num passando não assim tão distante ela esperava que o Exército, em especial, e seus congêneres da Marinha e da Aeronáutica, viessem “botar a nação nos trilhos”. Ressalte-se que dos 37 presidentes da República, 9 eram militares de alta patente que chegaram ao poder através de vias não democrática, à exceção dos marechais Hermes da Fonseca, no período de 1910/1914, e Eurico Gaspar Dutra, no período de 1946/1951, isto sem levar em consideração os governos militares da Junta Governativa Provisória de 1930 (composta pelos generais Augusto Tasso Fragoso, João Mena Barreto e pelo almirante Isaías de Noronha, de 24 de outubro a 3 de novembro de 1930) e da Junta Governativa Provisória de 1969 (composta pelo General-de-Exército Aurélio de Lira Tavares, o Almirante Augusto Rademaker e o Marechal-do-Ar Márcio de Sousa Melo).
Nestas três últimas décadas, o “paizão” deixou a farda e vestiu a toga: ocorreu uma enorme “judicialização” da vida, no Brasil; o Poder Judiciário, por seus diversos órgãos e de acordo com as competências estabelecidas legalmente, é sempre chamado a decidir acerca das coisas banais do cotidiano a assuntos nacionais de grande relevância. Muitas questões que deveriam ser objeto apenas das decisões (políticas) das casas legislativas dos três níveis de poder federativo (central, regional e local, respectivamente, União, Estados e Distrito Federal, além dos Municípios) sempre desaguam no Judiciário; é a constante e não menos deletéria “judicialização” da política, por obra do velho paternalismo: a vitória parlamentar resultante do consenso majoritário dos membros da casa legislativa (que se traduz na regra de que a decisão da maioria prevalece) quase sempre é substituída por alguma medida antecipatória ou definitiva emanada de órgão do Poder Judiciário, a pedido de parlamentares derrotados em votações democráticas. Aquilo que na linguagem do futebol se diz “ganhar no tapetão”.
Ao lado dessa cultura de “judicialização” da vida, no Brasil, o Poder Judiciário ganhou enormes espaços institucionais na Constituição de 1988, isto sem falar no aparato de prerrogativas e competência atribuídas ao Ministério Público que, em verdade, tem feição de um quarto poder do Estado, embora constitucionalmente esteja na esfera do Poder Executivo. Esse empoderamento passou a ser reflexo da hegemonia dos juízes de todos os naipes e que sobre todas as coisas são chamados a decidir. 
Daí o enorme impacto que tem, neste momento de instabilidade das instituições republicanas brasileiras, agravada pela crise econômica que o Brasil enfrenta, a morte do ministro Teori Zavascki que, independentemente das questões antes aludidas, representa uma severa perda para a nação, por suas próprias qualidades de jurista respeitado, de funcionário público exemplar e de cidadão. Enfim, pelo tanto de honorabilidade que impôs à toga que envergou por quase três décadas.

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