Paulo Afonso Linhares
Nas democracias ainda não maduras são comuns a utilização de um arsenal de medidas casuísticas que ‘adequam’ as instituições jurídico-políticas aos interesses momentâneos de indivíduos, grupos ou até de partidos políticos. O paradoxal é que essas práticas viciadas e viciosas terminam por alterar o próprio sentido da democracia, até para negá-la em sua essência.
Uma definição singela de casuísmo é aquela que o traduz como a simples aceitação passiva de ideias, doutrinas e princípios jurídicos ou político-filosóficos. Do ponto de vista da prática jurídica significa obediência inconteste à lei, mesmo que seja ela defeituosa porquanto, segundo afirmativa que lancei em texto acadêmico publicado há duas décadas, mas, atualíssimo (Das contradições entre o direito positivo e plano da suprapositividade - Ensaio - in NOMOS - Revista do Curso de Mestrado da Universidade Federal do Ceará (UFC) - Vol. XV, nºs 1/2 - jan./dez. 1996 - p. 104/112), pelo qual a “emissão de juízos de valor e de decisões de vontade, (...) pelo aplicador do Direito, decorre exclusivamente de autorização, implícita ou explícita, da lei. No entanto, dois fenômenos de imperfeição do Direito têm grande repercussão e obrigam, em regra, a que os aplicadores do Direito busquem soluções em um plano situado para além da positividade: a) as lacunas jurídicas; e b) as incorreções da lei. Em ambos os casos, o aplicador do Direito não encontra instrumentos apropriados para resolver essas questões no âmbito do jus positum”, que é o direito positivo. No segundo caso, de incorreções contidas na lei, é comum o emprego de soluções casuísticas ao sabor dos interesses em jogo e sem qualquer raiz principiológica.
Os casuísmos são especialmente perversos quando medram em ambiente democrático, porquanto corroem as instituições e corrompem os costumes políticos. Claro, nas ditaduras os casuísmos são a regra: os tiranos de todos os matizes ideológicos e políticos engendram leis que satisfaçam seus apetites, embora com grandes prejuízos para a sociedade.
No Estado Democrático de Direito, sobretudo, a atividade legiferante deve obedecer a balizas estreitas e não apenas no aspecto formal observado nos artigos 59 a 69, da Constituição Federal, que trata do processo legislativo - que compreende a elaboração de emendas à própria Constituição, bem como as leis complementares, ordinárias e delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções -, mas, por último e não menos importantes, tocantes aos aspectos ético-políticos dos conteúdos materiais das normas jurídicas, aquilo que o Barão de Montesquieu denominou como sendo o “espírito das leis”, para preservar importantes princípios norteadores da ordem jurídica constituída, como o da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, previstos no caput do artigo 37, da Carta Magna brasileira.
A atividade legiferante bafejada de pendores casuísticos, geralmente produz monstrengos legais, legislações teratológicas (embora o termo “teratológico” se aplique mais às decisões), porque se constituem de anomalias e malformações vinculadas a perturbações e desvios no processo de origem das normas jurídica. Uma lei feita para acobertar ou impedir determinadas situações, mesmo que em completo descordo com os princípios ético-políticos em que se assentam as instituições, constitui típico casuísmo.
Um exemplo recentíssimo disto foi o da Medida Provisória nº 1.069/2021, editada em 6 de setembro de 2021 pelo presidente Jair Bolsonaro, com objetivo de alterar o Marco Civil da Internet de modo a dificultar a moderação de conteúdos postados nas redes sociais. Claramente, o ‘espírito’ dessa lei era a preservação dos interesses políticos de Bolsonaro e seus acólitos, que utilizam as plataformas digitais de modo reconhecidamente agressivo, inclusive, com abundante veiculação de conteúdos falsos (fake news) no objetivo de causar danos àqueles que se lhes opõem. Inequívoco casuísmo. Tanto que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, devolveu ao Palácio do Planalto a MP 1.069/2021, ademais da decisão liminar da ministra Rosa Weber, do STF, datada de 14.09.2021, que suspendeu a eficácia dessa mesma norma.
Outro enorme casuísmo está em andamento: o novo Código Eleitoral que poderá – e esperamos que não! – substituir o vetusto Código Eleitoral em vigor (Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965). O projeto recentemente aprovado na Câmara dos Deputados, com mais de 900 artigos (contra os 383 do atual), é um amontoado de casuísmos e enormes retrocessos, a exemplo do retorno das coligações partidárias nas eleições proporcionais e a desregulamentação dos mecanismos de controle dos gastos de partidos e candidatos nas eleições, a chamada “contabilidade eleitoral”, cujos aperfeiçoamento, inclusive com a utilização de ferramentas digitais avançadas, tem reduzido significativamente práticas ilícitas de abuso do poder econômico nos pleitos eleitorais.
Gravíssimo é o retrocesso da volta das coligações partidárias em eleições proporcionais. Ora, a partir das Eleições de 2020, passou a vigorar a regra da Emenda Constitucional nº 97/2017, que determinou o fim das coligações partidárias nos pleitos para cargos proporcionais (vereadores, deputados estaduais e distritais e deputados federais). Assim, no processo eleitoral de 2020 os candidatos a vereador somente puderam disputar o cargo por meio de chapa única do partido ao qual estavam filiados, com inegável fortalecimento do sistema partidário.
Nas eleições de 2022, os deputados federais que compõem o chamado “Centrão” querem a volta da coligações partidárias, que poderiam dar sobrevida àquelas pequenas estruturas partidários, os pequenos, os micros e os ‘nano partidos’ que, desprovidos de representatividade social, pretendem eleger representantes nas casas legislativa em associação com outros partidos. Isto não apenas enfraquece os partidos políticos como impõe um acentuado déficit de legitimidade aos processos eleitorais, a exemplo do caso de um candidato (a vereador ou deputado estadual/federal) que, filiado a um pequeno partido coligado a um grande, poderá ser eleito com a metade dos votos necessários para eleger postulante de outros partidos. No sistema atual isto é mais difícil de ocorrer.
Enfim, a coligação de partidos em eleição proporcional é um enorme absurdo e seu retorno, no bojo desse projeto de Código Eleitoral, um retrocesso inadmissível. Neste momento, a esperança está no Senado Federal, cujos membros, liderados pelo senador Rodrigo Pacheco (DEM/MG), seu grande presidente, poderá jogar uma pá de cal nesse e noutros casuísmos albergados no projeto aprovado na Câmara. É ótimo para os partidos político e bem melhor para a democracia brasileira que, em meio a tantos tiroteios institucionais, vem mostrando-se vigorosa. Viva.