segunda-feira, 15 de julho de 2013

Artigo de Paulo Afonso Linhares

A DEMOCRACIA E AS MULTIDÕES

Paulo Afonso Linhares

As democracias verdadeiras e maduras têm a placidez dos lagos. A História tem mostrado que o exercício direto da democracia muitas vezes conduz à sua própria negação, máxime quando se traduz naquelas manifestações de massas populares cujas características fundamentais são o amorfismo, a inorganicidade e a inobjetividade. Quanto à primeira, inegável é que as multidões naturalmente são destituídas de formas e nada mais representam que um ajuntamento de pessoas socialmente díspares e dispersas que, momentânea e ocasionalmente, dividem um mesmo espaço geográfico. As manifestações de rua são tidas como inorgânicas porquanto apresentam, quando muito, formas organizativas primárias, de caráter precário, efêmero e assistemático; na verdade, sua "organização" em nada difere de uma simples manada de búfalos prestes a se lançar em desastroso e incontrolável estouro. Por fim, a falta de objetivos bem demarcados é algo presente nos protestos de rua: a simples repressão policial, que em tese busca preservar a segurança pública, pode transformar-se no “motivo” que muitas vezes lhe falta e logo se transforma numa verdadeira “jihad”, a guerra santa na língua árabe.

Aliás, é ledo e cego engano daqueles que defendem serem as manifestações de protesto de rua uma forma de exercício da democracia direta. Coisa nenhuma. Ora, como já referido antes, as multidões que protestam não têm objetivos definidos nem seguem qualquer roteiro político mais sofisticado; no máximo pode “adotar” algumas bandeiras que sequer têm capacidade de compreender, a exemplo do que se fez recentemente com a PEC 37: habilmente os defensores da rejeição pelo Congresso Nacional da proposta de emenda constitucional que retirava o poder de investigação do Ministério Público conseguiram colocar essa bandeira nas manifestações ocorrida em todo país. Resumo da ópera: amedrontados, os deputados federais se apressaram em rejeitar a proposta, o que seria improvável antes dos distúrbios que colocaram de joelhos as autoridades públicas deste Brasilzão destrambelhado. Por isto é que elas estão mais próximas das formas clássicas de autodefesa (entendida como forma primitiva de solucionar conflitos) coletiva do que de qualquer instituição democrática. Neste sentido, estaria bem mais próxima da greve, embora esta se faça presente nos ordenamentos jurídicos contemporâneos sem, todavia, perder suas características de típica “relíquia barbárica”, ao lado da legítima defesa própria ou de terceiro, prevista nas leis penais do mundo inteiro.

Quase invariavelmente a democracia direta, e mais ainda a democracia representativa (ou indireta), somente são exercitáveis através de instituições sóciopolíticas, de modo que operacionalmente são inviáveis no ambiente informal das ruas e praças com suas multidões sem rosto. Na Ágora ateniense (nome que se dava às praças públicas na Grécia Antiga, onde ocorriam reuniões em que se discutiam assuntos ligados à vida da cidade, a pólis) da época de Péricles, o influente strategoi ateniense, até que a democracia (direta) medrou, mas, em função do pequeno e qualificado número de participantes dos processos decisórios, dos quais eram excluídas as mulheres, os estrangeiros residentes (metecos) e não residentes (xenos) e os escravos: a prova disto é que, por volta do ano 431 a.C., afirma-se que de um total de 430 000 habitantes atenienses (contando mulheres e metecos), apenas 60 mil gozavam do benefício da cidadania.

Certo é que a democracia não viceja desapegada de instituições sociais formalmente cristalizadas, mesmo que em alguns casos admita modalidades bem simples e despidas de maiores formalidades, como ocorre nas assembleias comunitárias onde vencem as propostas que angariam mais adeptos, aferível com um simples levantar de mãos, mas, o suficiente para revelar aquilo que é a essência de qualquer modelo democrático: a prevalência do princípio da maioria. Numa multidão de milhares de indivíduos, que protesta nas ruas e praças, é praticamente impossível aferição de consenso democrático. As multidões atropelam tudo, inclusive a democracia; elas são o caos, com as tinturas da desordem e da confusão.

Daí que pretender manifestações de protesto bem comportadas é um sonho tolo das autoridades e uma bobagem corriqueira dos noticiários televisivos. Sem dúvida, muita gente nas ruas é sinal de problemas: basta um desvairado jogar a primeira pedra na primeira vidraça para haver um incontrolável quebra-quebra, num espargir coletivo de energia cujo desiderato é apenas destruir, desagregar e confundir. Entretanto, canalizada que seja essa energia através dos “dutos” que são as instituições sociopolíticas, tem-se a possibilidade de construir consensos majoritários na sociedade, que é a base da democracia e o pano de fundo da noção mesma de República. Sim, esta até pode ser uma temática “batida” e até chata para alguns, mas, tão necessária e urgente é a sua discussão para afastar as alegorias autoritárias que nos espreitam. Santa Hannah Arendt,adjuvanos
Nota do blog: Normalmente, a publicação do artigo de Paulo Afonso Linhares é feita aos domingos. Eta semana, por motivos técnicos só pôde ocorrer nesta segunda-feira.  

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