domingo, 22 de dezembro de 2013

Artigo de Paulo Afonso Linhares

A ERA DA SUPREMOCRACIA
Paulo Afonso Linhares 
A judicialização da vida social, no contexto da sociedade brasileira hodierna, é uma sombra avassaladora de crescimento geométrico e que não obedece a limites. Judicialização, na concepção de Luís Roberto Barroso, atual ministro do Supremo Tribunal Federal, “significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito se encontram o Presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral” (Disponível em: < http://bit.ly/JJmLnS >. Acesso em: 15 dez 2013). O paradoxo contemporâneo se situa na supremacia cada vez mais evidenciada do único poder/função do Estado – o Judiciário - cuja origem não é o princípio democrático, mas, mecanismos que sobrelevam a meritocracia dos concursos públicos de provas e títulos, para revesti-los de uma legitimidade que sobrepuajaria até àquela haurida no prélio das urnas. No Brasil, como de resto nos países de cultura latina, do chamado “direito continental” de raiz romano-germânica, a tradição é a de juízes não eleitos, que ascendem à magistratura majoritariamente através do concurso público de provas e títulos ou mediante um complexo sistema de composição dos juízos colegiados de segundo e terceiro graus, além da instância extraordinária que é o Supremo Tribunal Federal, que se alimenta de indicações que levam em conta critérios políticos e de cunho subjetivo dos governantes, além da exigência do ungido a cargo de juiz (ministro) dos chamados “tribunais superiores” de ter “notável saber jurídico e reputação ilibada”. 
Um dos fenômenos jurídico-políticos mais significativos nas sociedades democráticas é a questão da inconstitucionalidade de leis e atos normativos. No artigo “O controle da constitucionalidade no sistema luso-brasileiro”, Sálvio de Figueiredo Teixeira, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, na tentativa de definir esse fenômeno, colaciona as lições de Alfredo BUZAID, para quem uma lei é inconstitucional quando, no todo ou em parte, ofende a Constituição, e de Lúcio BITTENCOURT, que assinala ser inconstitucional a lei "que contém, no todo ou em parte, prescrições incompatíveis ou inconciliáveis com a Constituição". No processo de controle abstrato da constitucionalidade de leis e atos normativos por parte do Supremo Tribunal Federal, alguns estudiosos opõem sérias objeções cujas bases repousam naquilo que o jurista norte-americano Alexander BICKEL, na significativa obra “The least dangerous branch” (2. ed. Indianapolis: Bobbs-merril Co., 1986) denominou de “dificuldade contramajoritária”, traduzida na “inadmissibilidade de órgãos do Poder Judiciário – não eleitos e supostamente menos responsáveis politicamente – invalidarem leis ou atos normativos emanados do Poder Legislativo em um regime democrático”, citado por Luís Fernando SGARBOSSA e outros, em  artigo sobre o tema (disponível em: . Acesso em 15 dez 2013). 
Ora, como pode os onze ministros do Supremo Tribunal Federal anular uma lei discutida e aprovada pelas duas casas do Congresso Nacional (com 81 senadores e 513 deputados federais), cujo processo de elaboração impõe passagens por diversos filtros, tocante à constitucionalidade, quer nos diversos níveis do Poder Executivo, quando este detém a iniciativa da proposição legislativa, ou os filtros do Legislativo (as diversas comissões temáticas, as comissões mistas, o trabalho de relatoria da matéria etc.), todos que têm como escopo a fiscalização nas esferas não judiciárias da constitucionalidade das leis e atos normativos. Não sem alguma razão Oscar Vilhena VIEIRA, em recente estudo fala da “Supremocracia”(Disponível em: . Acesso em: 24 abr. 2011). Claro que essa objeção ao controle concentrado da constitucionalidade, feito no Brasil pelo STF, não deve ser levado a extremos, mesmo porque não se deve reduzir a democracia ao princípio majoritário, o que não deixa de evidenciar que “uma concepção reducionista da democracia, sinonimizando-a à regra da maioria, assim como uma concepção exagerada da mesma, adotando-a como um valor absoluto, podem, ambos, obscurecer o papel de institutos como o controle judicial de constitucionalidade, aviltando-os”, nas palavras do já citado SGARBOSSA et alii. O que se dever evitar, doutra parte, são os abusos que podem ser cometidos pela Jurisdição Constitucional – como algumas formas de usurpação da competência legislativa do Congresso Nacional - tudo à conta do ativismo judicial. 
A menção à “supremocracia”, nos dias que correm, ultrapassa a mera concepção de controle abstrato de constitucionalidade e transcende até o órgão incumbido de fazê-lo (o STF), para significar uma enorme concentração de poder político no âmbito do Judiciário, em qualquer de suas instâncias. A pirotecnia que o Supremo Tribunal Federal empregou no julgamento do chamado “Mensalão”, com enormes concessões ao aparato midiático mais conservador em detrimento de direitos e garantias fundamentais assentados na Constituição, da qual é ele o guardião, bem demonstra os males do ativismo judicial, vocábulo que comporta várias acepções, porém, no campo do Direito, de modo singelo designa um agir do Judiciário que extrapola os poderes que a ordem jurídica lhe confere. 

No entanto, a face mais cruel e indefensável do ativismo judicial não se refere à concretização de fins e valores emanados da Constituição, com usurpação das competências dos outros Poderes pelo Judiciário, mas, nas atitudes de magistrados, sejam dos Tribunais superiores, das cortes regionais ou dos juízos singulares, sobretudo, os da Justiça Especializada Eleitoral, cada vez mais tentados a substituir, com suas decisões, os vereditos da soberania popular, ditados através das urnas. Claro, espera-se do Judiciário uma postura vigilante, eficaz e não menos vigorosa no combate ao abuso do poder político e econômico nos pleitos eleitorais, porém, sem ultrapassar os limites impostos pelo legislador, a chamada "mens legis". Por isto, há de ser sempre parcimonioso e sereno o julgamento judicial tendente a afastar, por algum vício insuperável, a soberania popular exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, segundo reza o art. 14 da Constituição. Afinal, jamais será de boa e elementar lógica o remédio que mata o paciente.

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