sábado, 20 de novembro de 2010

Artigo de Paulo Afonso Linhares

DE TOLERÂNCIA E LIBERDADE
PAULO AFONSO LINHARES

Nos mais de mil artigos já publicados, por dezenas de vezes referi-me àquela frase de Voltaire (na verdade, a ele atribuída) que traduz o seu credo republicano na força da liberdade de expressão: "Je ne suis pas d’accord avec ce que vous dites, mais je me battrai jusqu’à la mort pour que vous ayez le droit de le dire." O mesmo que, numa versão livre para a língua de Camões, seria: "Posso não concordar com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de dizê-lo." O pior de tudo é que de tempos em tempos  algum episódio de intolerância ou de desapego à liberdade me obriga a lembrar que essa formula atribuída a Voltaire, pouco importando, aliás, que tenha ele pronunciado essa frase,  traduz dois grandes princípios muito caros aos filósofos iluministas, mormente ao próprio Voltaire, que são a tolerância e a liberdade. A tolerância como virtude cívica e a liberdade um bem essencial à vida, duplas faces da exigência democrática que se reclama de todo o cidadão de respeito ao outro.
            Tomando emprestado tal parêmia voltariana, hei de dizer que não creio em nenhuma das grosseiras assertivas do juiz mineiro Edilson Rumbelsperger Rodrigues contra a Lei Maria da Penha, em sentenças que prolatou, mas defendo o seu direito de dizê-las. As invectivas do juiz Rodrigues lhe valeram uma severa punição por parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), quando o afastou de suas funções judicantes por dois anos ao decretar, por 9 votos a 6, a sua disponibilidades, esta uma das "punições" previstas na Lei Orgânica da Magistratura. Aliás, a conselheira Eliana Calmon  (ministra do STJ), propôs uma censura ao magistrado, com aplicação de um exame de sanidade mental, o que não foi aceito pelo CNJ.
             E o que fez, afinal, o juiz Edilson Rodrigues? Segundo noticiado amplamente na imprensa nacional, em decisões prolatadas em ações judiciais propostas contra homens que agridem suas esposas/companheiras, com base na Lei Maria da Penha, o juiz Rodrigues asseverou a absoluta inconstitucionalidade dessa Lei que não passa de "um conjunto de regras diabólicas" e que, doutra parte, "a desgraça humana começou por causa da mulher" (!?). Noutra sentença, chama a Lei protetiva da mulher contra a violência doméstica de "monstrengo tinhoso", porquanto "[...] Para não se ver eventualmente evolvido nasm armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de ser ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões." Por fim sentencia esse que, parece, ser o oposto do "bom juiz  Magnaud" tão caro à tradição judiciária francesa, finaliza uma de suas catilinárias afirmando que "a vingar esse conjunto de regras diabólicas, a família estará em perigo, como inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras, porque sem pais; o homem subjugado".
            Sem dúvida falta a Rodrigues um ou alguns parafusos no cocoruto, que suspeita a ministra Eliana Calmon, isso sem falar nessa estranha aversão às mulheres que ele manifesta, bem no estilo da serpente alcoviteira que revela à mulher a maçã fatal com que esta "envenenaria" o homem, tangendo-o para a vala do pecado e atraindo a ira do Criador etc. etc.
            O CNJ errou na sua decisão. O juiz Rodrigues tem o direito de expressar suas (absurdas) opiniões nos julgados que profere, que podem merecer censura apenas dos órgãos judicantes das instâncias superiores, nos modos o formas legais. Do modo como agiu, o CNJ perigosamente resvala para agredir os princípios que, no seio da Constituição, protegem um direito maior que é o da livre manifestação do pensamento que tem o cidadão. No âmbito da magistratura nacional, esse preceito se especializa na livre convicção do juiz. E se fosse um jornalista que dissesse as mesmas diatribes contra a Lei Maria da Penha? Seria igualmente punido? Não, não poderia ser punido. Nem o tal juiz que, embora claramente sem compostura, merece o direito de externar suas opiniões absurdas. Pensar em contrário é apostar contra a tolerância e a liberdade.  


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