domingo, 15 de setembro de 2013

Artigo de Paulo Afonso Linhares

INCIDENTE EM LA PAZ

Paulo Afonso Linhares

O último suspiro literário desse genial escritor brasileiro, Érico Veríssimo, foi a instigante obra Incidente em Antares, publicada em 1971, em que narra  a trajetória da pequena e fictícia cidade de Antares, situada na fronteira do Rio Grande do Sul, cenário das contendas políticas entre as oligarquias dos Campolargo e dos Vacariano. Desde suas fundação, em 1853, a cidade era comandada por Chico Vacariano até que um oponente, Anacleto Campolargo, aparece para disputar o domínio político, dando origem à rivalidade entre as duas famílias que se projetaria por mais de sete décadas.

Interessante é que, na construção da obra, Veríssimo faz desfilar por ela acontecimentos políticos como a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, inaugurando o Estado Novo e a sua derrocada política; o governo de Dutra; a Volta de Getúlio ao poder em 1951, pelo voto popular; o atentado a Lacerda, combatente feroz de Getúlio; o suicídio de Getulio; a eleição de JK; a construção de Brasília; o governo de Jânio Quadros e sua estranha renúncia, até o dia em que, no ano de 1963, ocorreria em Antares o incidente que entitula o livro: num mesmo momento, sete pessoas morrem na cidade, entre elas Dona Quitéria, a matriarca da família dos Campolargo. Em greve, os coveiros se recusam a sepultá-los, quando então os mortos, por obra do realismo fantástico, voltam à “vida” e passam a escrafunchar impiedosamente o cotidiano de seus familiares, ademais de apontar os defeitos e a podridão moral da sociedade, não antes de exigir das autoridades que as enterrem em 24 horas, pena de ficarem a apodrecer no coreto da cidade, para maior vexame dos vivos.

Episódio recente, envolvendo (mais um) incidente diplomático entre o Brasil e seu birreto vizinho, a Bolívia, trouxe à lembrança essa genial obra de Érico Veríssimo, que muito tem a ver com o incidente em La Paz, no qual o governo do sempre exasperado Evo Morales tentou sepultar politicamente um ferrenho opositor seu, o senador Roger Pinto Molina, que pediu asilo ao governo brasileiro e permeneceu 455 dias abrigado na Embaixada do Brasil na Bolívia. Em junho de 2012, o Brasil concedeu asilo diplomático ao senador, mas o governo boliviano não deu o salvo-conduto para ele deixar. Numa operação hollywoodiana, organizada pelo diplomata brasileiro Eduardo Saboia, ele foi retirado do território boliviano para o Brasil.

Operação clandestina e ilegal que desencadeou mais uma crise nas relações Brasil-Bolívia e que teve como saldo mais visível a queda do chanceler brasileiro Antônio Patriota, que foi substituído por Luiz Alberto Figueiredo Machado. Patriota foi condescendente com a quebra da hierarquia por parte de seu subordinado Sabóia, este transformado em herói pela imprensa conservadora e os opositores do governo Dilma Rousseff, que desde os tempos do governo Lula, criticam a passividade do Brasil diante da uma Bolívia agressiva e que promoveu a estatização de empresas brasileiras. O índio Evo Morales é um típico "mala sem alça" ou um "ponta de aterro", como queiram chamá-lo; dá coices até no vento.

Bobagem. A política externa brasileira não tem errado além do razoável nas relações com seus vizinhos. Aliás, a sua condição de liderança no Cone Sul lhe impõe a responsabilidade de absorver chutes e cabeçadas destes. No episódio de Pinto Molina, todavia, a diplomacia brasileira findou  por cometer vexatória lambança: sem o salvo-conduto do governo boliviano, jamais o Estado brasileiro deveria colaborar com a sua saída clandestina, mesmo porque ele responde a processos criminais em seu país como criminoso comum, segundo decisões do Judiciário local. E para criminoso comum não há possibilidade de concessão de asilo diplomático, segundo comezinha lição do Direito Internacional. Ademais, os criminosos comuns devem ser extraditados (A extradição é um ato de cooperação internacional que consiste na entrega de uma pessoa, acusada ou condenada por um ou mais crimes, ao país que a reclama. A extradição deve ser solicitada com base na reciprocidade de tratamento para casos análogos e será objeto de apreciação pelo Poder Judiciário). No lado oposto ao da extradição, há o princípio internacional de não devolução ("non-refoulement"), previsto na Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e no respectivo Protocolo de 1967, ratificados pelo Brasil, que determina a impossibilidade de extradição do refugiado como meio para impedir que essas pessoas sejam devolvidas para países onde suas vidas ou liberdade estejam sendo ameaçadas. Assim, sendo político o crime, não há extradição possível.


Se esses processos são falaciosos instrumentos de perseguição política, como acusa o senador Pinto Molina, caberá decidir o Supremo Tribunal Federal, quando apreciar eventual pedido de extradição a ser requerido pela Bolívia. Se mantiver coerência com o que tem decidido nos processos do "Mensalão", o STF vai mandar Pinto Molina de volta para seu país. Do contrário, Zé Dirceu e seus companheiros de infortúnios da Ação Pena 470, poderão se aproveitar do precedente e, antes de serem encarcerados em razão de decisões mais políticas do que jurídicas (veja-se, a propósito, a seríssima reflexão de Paulo Moreira Leite, no livro "A Outra História do Mensalão - As contradições de um julgamento político", com impagável prefácio de Jânio de Freitas) pedirão asilo nalguma embaixada sul-americana em Brasília. Afinal, entre eles e o senador boliviano a distância é mínima ou quase nenhuma: vítimas dessas intermináveis tragicomédias latino-americanas e suas elites conservadoras que se mantêm insepultas, sejam alguns ocupantes das curuis do Supremo Tribunal Federal, sejam os corifeus da grande imprensa conservadora, entre muitos outros, todos, aliás, como aqueles mortos-vivos de Antares.

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