INCIDENTE EM LA PAZ
Paulo Afonso Linhares
O último suspiro literário desse genial escritor brasileiro,
Érico
Veríssimo,
foi a instigante obra Incidente em
Antares, publicada em 1971, em que narra
a trajetória
da pequena e fictícia cidade de Antares, situada na fronteira do
Rio Grande do Sul, cenário
das contendas políticas
entre as oligarquias dos Campolargo e dos Vacariano. Desde suas fundação, em 1853, a cidade era comandada por
Chico Vacariano até
que um oponente, Anacleto Campolargo, aparece para disputar o domínio político, dando origem à rivalidade entre as duas famílias que se projetaria por mais de
sete décadas.
Interessante é que, na construção da obra, Veríssimo faz desfilar por ela
acontecimentos políticos
como a ascensão
de Getúlio
Vargas ao poder, inaugurando o Estado Novo e a sua derrocada política; o governo de Dutra; a Volta de
Getúlio
ao poder em 1951, pelo voto popular; o atentado a Lacerda, combatente feroz de
Getúlio;
o suicídio
de Getulio; a eleição
de JK; a construção
de Brasília;
o governo de Jânio
Quadros e sua estranha renúncia,
até
o dia em que, no ano de 1963, ocorreria em Antares o incidente que entitula o
livro: num mesmo momento, sete pessoas morrem na cidade, entre elas Dona Quitéria, a matriarca da família dos Campolargo. Em greve, os
coveiros se recusam a sepultá-los,
quando então
os mortos, por obra do realismo fantástico,
voltam à
“vida” e passam a escrafunchar
impiedosamente o cotidiano de seus familiares, ademais de apontar os defeitos e
a podridão
moral da sociedade, não
antes de exigir das autoridades que as enterrem em 24 horas, pena de ficarem a
apodrecer no coreto da cidade, para maior vexame dos vivos.
Episódio recente, envolvendo (mais um)
incidente diplomático
entre o Brasil e seu birreto vizinho, a Bolívia,
trouxe à
lembrança
essa genial obra de Érico
Veríssimo,
que muito tem a ver com o incidente em La Paz, no qual o governo do sempre
exasperado Evo Morales tentou sepultar politicamente um ferrenho opositor seu,
o senador Roger Pinto Molina, que pediu asilo ao governo brasileiro e
permeneceu 455 dias abrigado na Embaixada do Brasil na Bolívia. Em junho de 2012, o Brasil
concedeu asilo diplomático
ao senador, mas o governo boliviano não
deu o salvo-conduto para ele deixar. Numa operação hollywoodiana, organizada pelo
diplomata brasileiro Eduardo Saboia, ele foi retirado do território boliviano para o Brasil.
Operação clandestina e ilegal que
desencadeou mais uma crise nas relações
Brasil-Bolívia
e que teve como saldo mais visível
a queda do chanceler brasileiro Antônio
Patriota, que foi substituído
por Luiz Alberto Figueiredo Machado. Patriota foi condescendente com a quebra
da hierarquia por parte de seu subordinado Sabóia, este transformado em herói pela imprensa conservadora e os
opositores do governo Dilma Rousseff, que desde os tempos do governo Lula,
criticam a passividade do Brasil diante da uma Bolívia agressiva e que promoveu a
estatização
de empresas brasileiras. O índio
Evo Morales é
um típico
"mala sem alça"
ou um "ponta de aterro", como queiram chamá-lo; dá coices até no vento.
Bobagem. A política externa brasileira não tem errado além do razoável nas relações com seus vizinhos. Aliás, a sua condição de liderança no Cone Sul lhe impõe a responsabilidade de absorver
chutes e cabeçadas
destes. No episódio
de Pinto Molina, todavia, a diplomacia brasileira findou por cometer vexatória lambança: sem o salvo-conduto do governo
boliviano, jamais o Estado brasileiro deveria colaborar com a sua saída clandestina, mesmo porque ele
responde a processos criminais em seu país
como criminoso comum, segundo decisões
do Judiciário
local. E para criminoso comum não
há
possibilidade de concessão
de asilo diplomático,
segundo comezinha lição
do Direito Internacional. Ademais, os criminosos comuns devem ser extraditados
(A extradição
é
um ato de cooperação
internacional que consiste na entrega de uma pessoa, acusada ou condenada por
um ou mais crimes, ao país
que a reclama. A extradição
deve ser solicitada com base na reciprocidade de tratamento para casos análogos e será objeto de apreciação pelo Poder Judiciário). No lado oposto ao da extradição, há o princípio internacional de não devolução ("non-refoulement"),
previsto na Convenção
sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e no respectivo Protocolo de 1967,
ratificados pelo Brasil, que determina a impossibilidade de extradição do refugiado como meio para impedir
que essas pessoas sejam devolvidas para países
onde suas vidas ou liberdade estejam sendo ameaçadas. Assim, sendo político o crime, não há extradição possível.
Se esses processos são falaciosos instrumentos de perseguição política, como acusa o senador Pinto
Molina, caberá
decidir o Supremo Tribunal Federal, quando apreciar eventual pedido de extradição a ser requerido pela Bolívia. Se mantiver coerência com o que tem decidido nos
processos do "Mensalão",
o STF vai mandar Pinto Molina de volta para seu país. Do contrário, Zé Dirceu e seus companheiros de infortúnios da Ação Pena 470, poderão se aproveitar do precedente e,
antes de serem encarcerados em razão
de decisões
mais políticas
do que jurídicas
(veja-se, a propósito,
a seríssima
reflexão
de Paulo Moreira Leite, no livro "A
Outra História
do Mensalão
- As contradições
de um julgamento político",
com impagável
prefácio
de Jânio
de Freitas) pedirão
asilo nalguma embaixada sul-americana em Brasília. Afinal, entre eles e o senador
boliviano a distância
é
mínima
ou quase nenhuma: vítimas
dessas intermináveis
tragicomédias
latino-americanas e suas elites conservadoras que se mantêm insepultas, sejam alguns ocupantes das
curuis do Supremo Tribunal Federal, sejam os corifeus da grande imprensa
conservadora, entre muitos outros, todos, aliás, como aqueles mortos-vivos de
Antares.
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