A (NOVA) TÉCNICA DO GOLPE DE ESTADO
Paulo Afonso Linhares
Uma leitura de há muito e que me causou forte impacto foi um livro que veio a lume em 1931, intitulado "Tecnica del colpo di Stato" ("Técnica do golpe de Estado"), do jornalista e escritor italiano Curzio Malaparte (então diretor do jornal La Stampa, de Turim), em cujo texto explica as diferentes modalidades de golpe de Estado, seja de esquerda ou de direita, de Lenin a Mussolini, ademais de antecipar aquele que Hitler utilizaria para empalmar o poder na Alemanha. Nem precisa dizer que em pouco tempo Malaparte, aliás, um gênio literário de muitas aptidões, teve seu livro proibido em muitos países, inclusive na Itália e Alemanha, pátrias de seus pais (era filho de pai alemão e mãe italiana, nascido que foi em 09/06/1898).
Curzio Malaparte, cujo nome verdadeiro era Kurt Erich Suckert, ao perfilar as várias técnicas de perpetrar um golpe de Estado, objetivou dotar governos e, sobretudo, cidadãos, de instrumentos de defesa contra golpes, adotando medidas necessárias e até antecipatórias para evitá-los. Com efeito, assevera Malaparte que "a arte de defender um Estado é governada pelos mesmos princípios que regem a arte para conquistá-lo" e com muita razão adverte que "a opinião pública nesses países, nos quais é liberal e democrática, comete erro quando não se preocupa com a possibilidade de um golpe de Estado." Doutro lado, ainda hoje se afigura inusitada - e não menos verdadeira - a constatação de Malaparte de que "o problema da conquista e defesa do Estado moderno, não é uma questão política, mas técnica." Até Niccolò Machiavelli, o vetusto decano dos pensadores da política, ficaria atordoado.
Importante é entender o sentido da “técnica” aludida por Malatesta. Ora, atualmente a técnica não é mais concebida apenas como “um conjunto de procedimentos que seguiam algumas regras preestabelecidas para fazer algo em função de determinado fim”, mas, como “uma forma de apropriação da natureza pelo homem, portanto, parte da cultura”, segundo analisa Renato Somberg Pfeifer (disponível: <http://bit.ly/1f2xVM5 > Acesso: 18 jan 2014). O pensamento contemporâneo projeta como certeza a indissociabilidade entre as esferas morais - que carregam um fim em si mesmas - e a dos instrumentos que, por definição, não têm finalidade própria. Aliás, a técnica, como a ciência, que não são jamais neutras e estão a serviço de determinadas estruturas sociais, permitem a dominação de uma pessoa sobre outra ou que uma sociedade suplante (e até aniquile) outra. No campo da política, esgotadas as decisões no terreno da institucionalidade democrático-republicana (o resultado de uma eleição, por exemplo), muitas vezes as disputas são levadas para outros patamares, quando pessoas ou grupos – em ambos casos, sem esquecer a questão do partido político – ultrapassam os lindes da legalidade/legitimidade e utilizam certos recursos técnicos para resolver impasses político-institucionais que, inclusive, podem implicar rompimento da ordem jurídica, parcial ou totalmente. O golpe de Estado, nas suas múltiplas feições, é um destes.
Para usar o jargão da tecnologia informacional, o golpe de Estado seria uma espécie de "atalho" à exigência de legitimação do poder através de eleições diretas, com voto universal e secreto, tudo como manda o rito elementar dessa técnica - a democracia - que tem como azimute o princípio majoritário, ou seja, deve prevalecer a decisão fruto do consenso da maioria dos (cidadãos) eleitores, embora sem esmagar as posições minoritárias. Em suma, golpe de Estado é a ilegal derrubada de um governo legitimamente constituído, seja por métodos violentos, às vezes com uso extremo de força, seja pelo uso de instituições jurídico-políticas do próprio Estado para defenestrar governo legitimado por ato de soberania popular, neste caso é chamado de "golpe branco" porque se caracteriza pela manutenção de um verniz legal e de normalidade política. Na correta ótica de Malaparte (que significa "parte má", em italiano, para contrapor a Bonaparte - "boa parte - sobrenome de Napoleão), golpe de Estado é sempre a negação da democracia, embora a sua perfeição se dê naqueles casos em que os aplausos majoritários dos cidadãos que traduzam anseios por mudanças. Em resumo, o golpe de Estado é perfeito quando angaria apoio majoritário da opinião pública.
Ora, se focalizarmos aquele período imediatamente anterior ao golpe militar de 1964, no Brasil, é nítido o apoio que os golpistas tiveram de setores importantes da população, a tirar pela "Marcha da Família com Deus pela Liberdade", nome dado às diversas manifestações públicas organizadas, em algumas cidades importantes, por segmentos conservadores da sociedade brasileira contra o presidente João Goulart, algumas chegando a congregar cerca de meio milhão de pessoas. O resultado foi a quebra da ordem vigente, para iniciar um período de obscurantismo ditatorial que se prolongou por 21 anos, num inventário de cicatrizes que envolvem muitos mortos, desaparecidos e torturados.
Nas diversas fases da história republicana, no Brasil, o golpe de Estado tem sido uma tentação presente em todos os corações e mentes daqueles que têm exercido ou que anseiam exercer o poder político. Aliás, nunca é demais lembrar a teoria formulada pelo general Golbery do Couto e Silva, um dos condestáveis do regime militar brasileiro instituído em 1964 e findo em 1985, para quem a democracia, nestes prados tupiniquins, viveria no movimento pendular e constante de "sístoles" e "diástoles", isto é, da alternância entre períodos democráticos e autoritários. Claro, o ritual de passagem da democracia para uma ditadura é sempre marcado por alguma das modalidades (ou técnicas) de golpe de Estado, umas pacíficas e outras violentas. É de uma destas que a presente reflexão se ocupa.
Bem mais insidiosa do que a técnica do golpe de Estado que se esteia no apoio popular - o golpe perfeito, segundo Malaparte, repita-se - talvez seja aquela que, de modo pacífico e quase imperceptível, lança mão de instrumentos legais para se sobrepor à soberania popular e destituir um governo (central, regional ou mesmo local) legitimamente constituído. Num país em que o Congresso Nacional é omisso ou abre mão expressamente de legislar sobre determinadas matérias, ademais da atuação de um Poder Judiciário cada vez mais ativista e invasor de competências, tem-se um bom caldo de cultura excelente para medrar a (nova) técnica do golpe de Estado pela via judicial. Em que ela consiste?
Antes de qualquer coisa, ressalte-se que Curzio Malaparte não conhecia ou ao menos não fala nessa possibilidade de golpe de Estado no seu livro. Sem embargo, ela se caracteriza por uma acendrada crença positivista na "infalibilidade" e "incolumidade" dos organismos judiciários nacionais como intérpretes e aplicadores do Direito. Algo assim como uma corporação de sacerdotes da deusa Têmis, cujos membros exercem poderes extraordinários de suprimir, instituir ou modificar direitos, de pessoas físicas ou de instituições, inclusive no que toca às diversas formas de liberdade, todavia, sem qualquer legitimação pelo voto de seus concidadãos.
Para combater os flagelos que desnaturam a democracia, como o paternalismo, o clientelismo, os abusos do poder econômico e político, a compra de votos, a nefasta ação dos demagogos e vendilhões da pátria, foram adotados marcos regulatórios de severidade draconiana que atribuem às instâncias da Justiça Eleitoral poderes para manter a integridade e a eficiência do sistema eleitoral prefigurado na Constituição, inclusive até com a cassação de mandatos eletivos, estes enquanto expressões maiores do exercício da soberania popular. Entretanto, essa competência se justificaria apenas em situações extremamente graves, jamais como prática rotineira. Lastimavelmente, é o inverso do que vem ocorrendo: arvorando-se de poderes que decerto não deveriam ter, juízes singulares e tribunais da Justiça Eleitoral têm destituído governos e banido da vida pública lideranças, por questões de somenos, bobagens e picuinhas, logo transformados em pecados capitais que recebem o nome pomposo de "condutas vedadas".
A partir daí se abrem amplas possibilidades de satisfação dos mais diversos interesses econômicos ou políticos, estranhos aos fins da Justiça Eleitoral, esta que foi uma das grandes conquistas da sociedade brasileira nos anos 30 do século XX e que acabou com muitos dos enormes vícios do sistema eleitoral da Velha República, sobretudo a malfadada "eleição a bico de pena" (nesse período era comum que os resultados fossem alterados para atender aos interesses de grupos políticos oligárquicos, com a alteração dos mapas eleitorais com uma espécie de caneta, o bico de pena) ou o "voto marmita" (o eleitor já levava em envelopes as cédulas eleitorais impressas por candidatos e partidos, que eram depositados nas urnas de pano e, na maioria dos casos, sequer suspeitava quais eram os candidatos em que estava a votar, pois recebia o envelope lacrado das mãos de algum chefete político...), isto para ficar apenas em dois exemplos.
Cada vez melhor aparelhada, inclusive contando com um dos melhores sistemas informacionais do mundo, em matéria de cadastro eleitoral e de processamento eletrônico eleições (e-Voting), a Justiça Eleitoral tem avançado, também, na tomada de contas de partidos e candidatos, com a obrigatoriedade do lançamento "on line" de receitas e despesas, tudo para combater os diversas graves vícios que ainda permeiam os processos eleitorais, como os abusos de poder político e econômico, a compra de votos, a propaganda ilícita e outras condutas vedadas que influenciam os resultados das eleições e desviam a livre manifestação do corpo eleitoral. No entanto, o objetivo da legislação eleitoral não é jamais transformar os juízos (singular ou colegiado) eleitorais em xerifes implacáveis desses processos, nem supremos substitutos da soberania popular de que fala o art. 14 da Constituição. Lamentavelmente, algumas formas exacerbadas de ativismo têm levado magistrados a prolatar decisões (em caráter "originário" ou "confirmatório") que extrapolam em muito àquilo que se entende no universo jurídico como "razoabilidade" na interpretação e aplicação do direito.
Claro que esses excessos nos julgamentos de processos, no campo do Direito Eleitoral, não seriam apenas meros desvios no plano da subjetividade dos julgadores, mas, resultantes de um conjunto complexo de motivações que vão desde as opções filosóficas, ideológicas, políticas ou psicológicas, até aquelas que revelam um conjunto de vícios funcionais, inclusive alguns casos aberrantes de corrupção traduzidos, para maior vergonha, na aberta venda de decisões judiciais e outras barganhas impublicáveis, algumas delas enquadráveis naquilo que declarou o presidente do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, “ad verecundiam” como diziam os antigos jurisprudentes, sobre o promíscuo conluio entre juízes e advogados: “Há muitos (juízes) para colocar para fora. Esse conluio entre juízes e advogados é o que há de mais pernicioso. Nós sabemos que há decisões graciosas, condescendentes, absolutamente fora das regras.” Pano rápido.
Decisões maculadas pela graciosidade ou condescendência, “absolutamente fora das regras”, que impliquem destituição de um governo municipal, estadual ou federal legitimamente constituído não tem outro nome senão golpe de Estado pela via judicial. E têm ocorrido “aos montes” neste país-continente, sem que, aliás, a sociedade, a imprensa ou mesmo as autoridades se apercebam da enorme gravidade que constituem essas violações aos vereditos que emanam da soberania popular, nos processos eleitorais, gerando instabilidade institucional, incerteza e insegurança jurídicas. A substituição da soberania popular por uma decisão judicial há de ser sempre e sempre para preservar aquela, jamais para olvidá-la.
Diante de uma violação flagrante e ilícita da soberania popular, mediante golpe de Estado pela via judicial, as pessoas e instituições sociais não podem entendê-la como um estado de normalidade, pois é como aceitar aquela história da “banalização do mal” de que fala Hannah Arendt. E no albor de mais um processo de eleições (quase) gerais, no Brasil, neste ano de 2014, é fundamental a conscientização de que as violações da soberania popular transmudadas em verdadeiros golpes de Estado pela via judicial são intoleráveis tanto quanto as condutas vedadas ou delitivas praticadas por candidatos, eleitores ou autoridades, que infirmam os processos eleitorais e agridem o regime democrático e a ordem republicana.
Assim, quem quiser concorrer às próximas eleições deve colocar – se as tiver – as barbas de molho. Dona Dilma Rousseff, afigurada em todas as sondagens de opinião pública com vencedora da próxima eleição presidencial, deve ter muito cuidado com quem e como anda, o quê e onde fala. Por qualquer vacilo pode perder o mandato. Na certa, um golpe branco: os processos, as sessões-espetáculo do TSE ou do STF, as oligarquias das comunicações a apostar suas fichas a narcotizar a opinião pública com muitas e repetidas inverdades. Os perdedores de todos os naipes estarão sempre dispostos a buscar modificação de reveses eleitorais no “tapetão”. E não falta juiz querendo brincar de Deus e, nas asas do ativismo, tentado sempre a buscar aquele "ponto fora da curva": a técnica do golpe de Estado pela via judicial. Por fim, uma coisa é insofismável: aqueles que são tentados a substituir ilegitimamente a soberania popular não vão desistir facilmente. Nem nós desistiremos de denunciá-los. O alerta está feito.
A brilhante resposta ao texto de Paulo Linhares, do também advogado Marcos Araújo: A Carnavalização das Instituições
ResponderExcluirhttp://blogcarlossantos.com.br/a-carnavalizacao-das-instituicoes/