LEIS: PUBLIQUE-SE E DESCUMPRA-SE
Paulo Afonso Linhares
Se é bem certo que as boas leis nascem dos maus costumes, segundo afirmativa de Ambrosius Aurelius Theodosius Macrobius, escritor, filósofo e filólogo romano, autor dasSaturnais e do Comentário ao Sonho de Cipião (Leges bonae malis ex moribus procreantur- Saturnalia 3,17,10), é igualmente verdadeiro que péssimas leis podem nascer de boa intenções, a exemplo daquela que, no Brasil, pune severamente os motoristas que dirigem automóveis sob efeito de bebidas alcoólicas, mesmo em ínfimas quantidades. A tolerância (quase) zero dessa Lei, o seu radicalismo, faz com que ela tenha dificuldade de ser cumprida, criando uma enorme insegurança jurídica para as pessoas, sobretudo, diante da dificuldade se saber por quanto tempo perduram os efeitos da ingestão de bebidas alcoólicas no organismo.
Outro exemplo é a chamada Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar n.º 135/2010), cujo escopo é o de proibir que políticos condenados em decisões colegiadas de segunda instância possam ser candidatos a cargos eletivos. Claro, as motivações dessa Lei são excepcionais, mormente num país em que a corrupção é epidêmica e aparece sob as mais diversas formas, contaminando toda a superestrutura estatal. Em especial, ela se manifesta com muita força nos processos eleitorais, sob forma de abuso do poder econômico ou do poder político. Todavia, a Lei da Ficha Limpa tem perigosos efeitos colaterais, começando por vulnerar inapelavelmente o princípio da presunção da inocência (ou princípio da não-culpabilidade, como quer parte da doutrina jurídica brasileira) plasmado no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, quando preceitua que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, na condição de interprete maior da Constituição, emprestou interpretação extensiva à Lei da Ficha Limpa e chancelou a sua constitucionalidade. Embora isto não encerre a discussão, fato é que no plano institucional vige a radicalismo extremado e não menos ingênuo que trouxe a lume essa lei que faria corar o próprio arconte Drácon.
Assim, tanto poderá ser um ficha suja alguém que impõe gravíssimas lesões ao patrimônio público através de desatinados atos de corrupção, quanto algum gestor (público) cujas contas sejam rejeitadas pelos órgãos de controle externo da Administração (leiam-se tribunais de contas) em razão de pequenos e banais erros facilmente sanáveis e o que é melhor: na maioria das vezes eles em nada prejudicam o ente público, apenas refletindo um exagerado apego ao formalismo jurídico, em que certas regras e até exponenciais princípios do direito são erroneamente tomados ao pé da letra, isto é são frutos de interpretações literais que jamais contempla aquilo que os doutrinadores chamam de espírito da lei (ou mens legis, do latim).
Outro exemplo aberrante: a disseminação de equipamentos de fiscalização eletrônica do tráfego de veículos automotores, nas vias urbanas e nas rodovias, os denominados pardais, que são instalados com o objetivo claro de apenas extorquir pesadas multas dos cidadãos que, em face das difíceis condições impostas aos condutores de veículos, torna-se quase impossível que a lei não seja violada. Enfim, os pardais não visam educar o cidadão no cumprimento das normas específicas do trânsito, mas, torna-lo um contumaz violador dessas normas e sujeito às suas sanções.
Lastimavelmente, são leis feitas na intenção clara de tornar difícil o seu cumprimento; um intuito perverso está embutido em toda a extensão da norma, tudo bem na contramão da conhecida pregação de Marco Túlio Cícero ao defender que as leis foram criadas para a segurança dos cidadãos e para a manutenção dos estados (Leges ad civium salutem, civitatumque incolumitatem conditae sunt cf. Cícero, De Legibus 2.11), jamais para os propósitos de ludibriar, espoliar, iludir e extorquir do cidadão. No Brasil, essa prática de fazer leis para serem descumpridas já se incorporou à tradição jurídico-política desta nação. Lamentável.
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