A PRIMEIRA VÍTIMA
Paulo Afonso Linhares
No VII Encontro Internacional do Conpedi - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - realizado em Braga, Portugal, de 7 a 8 de setembro de 2017, um dos poucos oradores a se pronunciar por ocasião da solenidade de abertura foi o Prof. Dr. Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (empossado em 11 de maio de 2016, para um mandato de 4 anos). Brilhante e conciso discurso, em que enfocou as raízes açorianas de Florianópolis e a importância daquele evento acadêmico ser realizado em terras portuguesas. Depois veio a fala de Pilar del Rio, esposa do falecido escritor português José Saramago, principal oradora da noite e que proferiu palestra intitulada "Deveres humanos: simetria dos direitos conquistados". Eu vi e ouvi, estava lá também.
Entretanto, ninguém naquele seleto auditório da Universidade do Minho poderia imaginar que dias depois, no dia 14 de setembro, a vida do reitor Cancellier de Olivo daria uma radical, inesperada e triste guinada: foi preso pela Polícia Federal brasileira numa investigação conduzida pela delegada Érika Marena, uma das figurinhas carimbadas da Operação Lava Jato, em cumprimento ao decreto de prisão emitido pela juíza federal Janaína Cassol Machado que, além da desnecessária e humilhante privação temporária da liberdade, determinou que o reitor sequer poderia entrar em qualquer das instalações da UFSC, a despeito de não existir qualquer indício de sua participação direta na prática de crime; estaria, segundo a julgadora, apenas a obstruir as investigações. Como geralmente tem ocorrido, viu-se mesmo foi o uso açodado das prisões provisórias que dá o tom espetaculoso e midiático às operações desses entes federais envolvidos no combate à corrupção.
Com efeito, segundo informa o El País, edição brasileira, essa investigação dirige-se a “uma organização criminosa que teria desviado recursos de cursos em Educação a Distância, oferecidos por programas da Universidade Aberta do Brasil (UAB) na UFSC. O dinheiro teria sido desviado entre 2006 e 2017, inclusive, para pessoas sem vínculo com a universidade, como parentes de professores e até um motorista”. E o reitor da UFSC nada tinha a ver diretamente com isso, mas, no sentir da autoridade policial teria criado obstáculos ao desenvolvimento da ação investigativa.
O reitor da UFSC sofreu a humilhação de ser preso, algemado e despido, algo que, lastimavelmente, é uma pratica cada vez mais banal e corrente no seio da Sacra Aliança da Moralidade Pública (juízes implacáveis, anjos vingadores do Ministério Público e Polícia Federal), agora manchada no sangue de sua primeira vítima que, não suportando os vexames e humilhações sofridos que lhe imprimiram n’alma profunda e insuperável dor moral, cometeu suicídio ao se jogar do quinto andar de um luxuoso centro de compras de Florianópolis. Assim, uma bela história de vida e superação de adversidades, terminou aos 59 anos, no granito insensível do templo de consumo. Era natural da Cidade de Tubarão (SC), de origem humilde, sendo filho de um costureira e de um operário da Companhia Siderúrgica Nacional. Bacharel, mestre e doutor em Direito, galgou pelo voto de seus pares honrosos cargos acadêmicos na sua alma mater, a UFSC, chegando ao mais alto desses, o de reitor.
Ressalte-se que a prisão injusta e desnecessária do reitor Cancellier foi revogada dias após pela juíza federal Marjôrie Cristina Freiberger, que substituiu Janaína Cassol Machado, ausente por razões de ordem médica. O sensato gesto da juíza Freiberger lamentavelmente não foi capaz de mitigar a dor do reitor Cancellier que, a um amigo íntimo, o jornalista Carlos Damião, do jornal Notícias do Dia, afirmou: “É uma coisa da qual nunca vou me recuperar”, pois "todos os presos são tratados assim, despidos, constrangidos, com as partes íntimas revistadas. Depois são encaminhados ao pessoal do DEAP (Departamento de Administração Prisional), para serem acomodados nas celas”.
Cancellier fez de sua morte trágica um gesto político de protesto contra os excessos ultimamente cometidos no seio dessa aliança institucional que envolve a Justiça Federal, o Ministério Público e a Polícia Federal. Aliás, sobretudo no contexto da Operação Lava Jato, outras vítimas importantes têm aparecido, além dos prejuízos incalculáveis que tem causado à economia nacional, com a destruição de centenas empresas (da construção civil pesada, do mercado financeiro, da área do petróleo e do agronegócio) e milhares de empregos. Inegável que a luta contra a corrupção deve ser levada a frente sem margem a retrocessos, mas, pautando-se sempre no respeito a um conjunto de garantias individuais e coletivas plasmado na Constituição.
Os excessos da prisões provisórias (preventivas e temporárias), das conduções coercitivas, da apreensão de bens, dos julgamentos em que são impostas severas penas sem provas cabais, baseadas em delações de criminosos confessos que tudo dizem e a todos acusam, como impõe os representantes do Ministério Público, para um enorme abrandamento de pena e de benefício patrimonial. Excessos esses denunciados pelo Procurador Geral do Estado de Santa Catarina, João dos Passos Martins Neto que, em depoimento ao mesmo El País - Brasil, resume: “Que o legado do Professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo seja, em meio a tantos outros bens que nos deixou, também o de ter exposto ao País a perversidade de um sistema de justiça criminal sedento de luz e fama, especializado em antecipar penas e martirizar inocentes, sob o falso pretexto de garantir a eficácia de suas investigações”. E disse tudo que haveria de ser dito. Cabe à sociedade brasileira refletir sobre os excessos e abusos que a ditadura judiciária, em implantação no Brasil, começa a causar às instituições jurídico-políticas nacionais, antes que seja tarde demais, como foi para o nobre reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo. Tenebrae factae sunt.
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