segunda-feira, 16 de julho de 2018

Artigo de Paulo Afonso Linhares

JUSTIÇA: AS  VÍSCERAS EXPOSTAS

Paulo Afonso Linhares


Complexo de vira-lata à parte, uma propensão natural da sociedade brasileira, em todos os níveis, é avacalhar conceitos e instituições. Leia-se o “avacalhar” no sentido clássico do “corromper”, de mudar características, adulterar, alterar, misturando-se com outra acepção, que é a de depravar, perverter, viciar, tudo conforme se aprende no Aurélio. Nestas paragens tupiniquins nem sempre em se plantando tudo dá, mas, tudo que possa parecer sério é factível de avacalhação.
Em tempos recentes, depois de avacalharmos o ciclo de governos militares 1964-1985, partimos para deixar na lama todos os governos democráticos posteriores, de todos os matizes políticos e ideológicos. Claro, tudo isso muito facilitado pelos vícios históricos do patrimonialismo e do paternalismo que inevitavelmente deságuam na apropriação da coisa pública por grupos privados em detrimento de toda uma coletividade que é chamada a sustentar os privilégios enormes de poucos.
Depois da passagem de muitas instituições pelo inefável moinho da avacalhação, eis que se posta nos seus umbrais a mais sisuda e (atualmente) poderosa de todas -  o Poder Judiciário -  que, a partir de imprecisos desenhos constitucionais se propõe como dianteira política, ponta de lança, algo assim como um ‘ centro-avante’ da estupefata nação brasileira, a despeito de sua origem não ser a soberania popular exercida através do voto direto e secreto.
O último episódio a envolver o Judiciário, em dias recentes, teve a ver com esse monstrengo que atende pelo nome de “Operação Lava-Jato”, capitaneada pela máquina da Justiça e secundada pelo Ministério Público e a Polícia Federal, que, a pretexto de esvurmar o tumor da corrupção sistêmica firmemente arraigada em toda a estrutura do Estado - o que não deixa de ser um bom e justo anseio de uma sociedade cada vez mais depauperada e sem esperança - tem lançado mão de fórmulas garantidoras de uma hegemonia incontrastável não apenas para pautar politicamente a Nação, mas, também, para acessar uma série de privilégios  antirrepublicanos. 
Ocorre que, estando o Brasil cabisbaixo com o fracasso da participação de sua seleção de futebol na Copa do Mundo, derrotada que foi na sexta-feira, 6 de julho de 2018, no domingo seguinte trombetearam os meios de comunicação a surpreendente notícia da concessão de uma medida liminar da lavra do desembargador federal Rogério Favretto, do Tribunal Federal da Quarta Região, que determinava a imediata libertação do ex-presidente Lula, encarcerado em Curitiba, na sede da Polícia Federal para cumprimento de pesada condenação imposta pelo juiz federal Sérgio Moro e corroborara por uma das câmaras daquele mesmo Tribunal.
Embora questionável juridicamente sob diversos prismas, a decisão do desembargador Favretto, mandava a liturgia processual - certo ou errado esse despacho, não importa - fosse-lhe dado cumprimento imediato em homenagem à tão difundida e sacrossanta parêmia de que “decisão judicial não se discute, cumpre-se”. Ora, dos órgãos públicos judiciários brasileiros saem diariamente centenas de milhares de decisões que, em grande medida, são verdadeiros aleijões jurídicos - ou “teratológicas”, como dizem os operadores do direito -, todavia, devem ser cumpridas, sob pena de agressão à “dignidade da Justiça”.
Dessa feita, porém, esse postulado transmudou-se em poderosa tábula rasa: o juiz Moro, de férias em Portugal, expediu decisão que impedia fosse cumprida, pela Superintendência da Polícia Federal do Paraná, a ordem emanada do desembargador Favretto. O nó estava dado, em especial depois de reforçada pelo presidente do TRF-4, desembargador Thompson Flores, e o relator da Lava-Jato no mesmo tribunal,  desembargador João Pedro Gebran. Impasse como há muito tempo não se via no âmbito do Judiciário.
Essa ópera bufa protagonizada pela Justiça brasileira teve como fecho o iracundo discurso da presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministra Laurita Vaz, quando decidiu denegar 143 pedidos de habeas corpus impetrados em favor do ex-presidente Lula, em 11 de julho de 2018. Como não podia ser diferente, fez pesadas críticas ao desembargador Favretto, classificando a decisão deste como “teratológica”, ou seja, um aleijão jurídico, ao mesmo tempo em que derramou elogios ao juiz Sérgio Moro, que impediu o cumprimento da ordem que livraria Lula da cadeia. Aliás, é a mesma teratologia que centenas de juristas do mundo inteiro enxergam da sentença que condenou o líder petista a 9 anos de reclusão e estendido para 12 anos, em números arredondados,  pelos desembargadores da oitava turma do Tribuna Regional Federal da Quarta Região.
O tom agressivo da presidente do STJ - nomeada  ministra por Fernando Henrique Cardoso - deixa patente que o desembargador Favretto será ‘fritado’, inelutavelmente, pela ousadia de sua decisão. Como resumo dessa ópera esdrúxula tem-se que o episódio expôs a “lawfare” (algo como perseguição judiciária, no direito norte-americano) de que é vítima o ex-presidente Lula, ademais de quebrar o velho  paradigma, sacrossanto, repita-se, para o Judiciário brasileiro, de que “decisão judicial não se discute, cumpre-se!” O que parecia um ritualístico duelo de punhos de renda, tão ao gosto da cultura bacharelesca tupiniquinss, agora virou luta franca, como tacapes a brandir no ar.
Fora das sisudas paredes dos tribunais brasileiros e seus “salões de passos perdidos”, entretanto, ganha força a ideia de “Lula livre”, pela voz insuspeita das ruas, cristalizando-se a impressão de que, ainda, há muito jogo pela frente. Aliás, pode vir aí, quem sabe, o Nobel da Paz para Lula? Fato novo? Sem dúvida. Para balançar as coronárias de brancosos e direitistas de todas as extrações, sobretudo, dos súditos do Califado de Curitiba. A conferir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários críticos sem identificação não serão aceitos.