domingo, 3 de novembro de 2013

Artigo de Paulo Afonso Linhares

A DEMAGOGIA DO “ZERO OITOCENTOS” 
Paulo Afonso Linhares 
            
Na cultura do povo brasileiro, decerto por suas raízes ibéricas, sedimentou-se a prática pouco recomendável de que as pessoas têm direito a certos serviços e bens sem qualquer contraprestação, tudo na base do chamado “boca livre” ou, como se diz atualmente, do “zero oitocentos”, numa alusão aos quatro primeiros algarismos dos números de telefone cuja chamada é gratuita para o consumidor/usuário. Claro, essa concepção é tanto mais aguçada quanto for o avanço do Estado-provedor-de-tudo-e-mais-alguma-coisa que medra nestas paragens tupiniquins, sobretudo, aquele vício de tudo se pôr à conta da “Viúva”, embora raramente alguém se lembre de que somos nós, os pagadores de tributos de muitas espécies, que custeamos todas essas farras de um Estado que, em todas as suas esferas (nacional, regional e local) gasta muito e mal o dinheiro dos contribuintes.
            É valioso recordar que, no passado mais distanciado, os padrões comportamentais de uma sociedade patriarcal e patrimonialista cuja vida política se pautava pelo clientelismo eram bem evidenciados, cujos traços mais marcantes, infelizmente, permanecem vívidos no cotidiano da sociedade brasileira. Claro, de modo não uniforme, de acordo com as peculiaridades políticas, econômicas e sociológicas de cada região do Brasil. Com efeito, os comportamentos paternalistas são muito evidenciados e preponderantes no cotidiano das pessoas, porquanto ainda se tem presente o viés ideológico da “Casa Grande & Senzala”, com todos os componentes malsãos que ele representa e que estratificam o “ethos” da sociedade brasileira, nas várias regiões do país, cuja urbanização voraz e desordenada não fez desaparecer costumes e práticas do ambiente rural, “do interior”.
            É bem verdade que, embora a Constituição de 1988 tenha carreado novos padrões tocantes ao exercício da cidadania, os diversos segmentos sociais representados na Assembleia Nacional Constituinte de 1987 tiveram a (compreensível) pretensão de inscrever na nova Carta aqueles direitos e garantias que consubstanciassem seus interesses de classe. Resultou daí que, ao final do processo, tivemos promulgada uma Constituição, posto que eivada pelo detalhismo exagerado, que elenca um portentoso elenco de direitos fundamentais e garantias talvez inéditas em leis fundamentais alienígenas contemporâneas. Na verdade, temos mesmo uma Constituição - que completou 25 anos recentemente – de primeiríssimo mundo, para uma estrutura socioeconômica de terceiro. Isto tem sido posto em evidência no curso de alguns episódios recentes: a bandeira do passe livre dos estudantes de Natal, tornada realidade no projeto de lei apresentado pela vereadora Amanda Gurgel à Câmara Municipal de Natal, aprovada por seus pares, intimidados pela pressão estudantil e, em boa hora, submetido aquele ao veto do prefeito Carlos Eduardo Alves. Ora, como imaginar uma estrutura caríssima de transportes coletivos, operada totalmente pela iniciativa privada mediante concessão pública, sem qualquer contrapartida financeira por parte de seus principais usuários, os estudantes de diversos níveis e diferentes estratos sociais? Absurdo.
          O custeio dos transportes coletivos deve ser rateado com a comunidade, embora seja admissível que uma faixa de estudantes – aquela relativa ao ensino fundamental e médio da rede municipal de ensino do Município de Natal – possa servir-se de transporte coletivo gratuito, mormente aquele feito em caráter especial. No mais é surreal imaginar, como declarou à imprensa a autora do projeto, que os empresários de transportes coletivos de Natal deveriam “abrir mão de parte de seus lucros”, bem assim que o Estado do Rio Grande do Norte e a União Federal igualmente participariam do rateio das despesas com o passe livre dos estudantes natalenses. Santa (nem tanto assim...) ingenuidade. Como se uma leizinha do Parlamento mirim natalense pudesse vincular a poderosíssima União e o Estado do Rio Grande do Norte, numa inversão inusitada e não menos esdrúxula do Princípio Federativo. No mais, obrigar os concessionários do serviço de transportes coletivos a “abrir mão de seus lucros” seria, na prática, como pretender revogar a Lei da Gravidade. Enfim, tudo com pouca racionalidade e muita demagogia.

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