UMA BALADA PARA MIGUEL
Paulo Afonso Linhares
Fosse conhecedor da arte da composição musical - e nunca aprendi a tocar
qualquer instrumento - comporia uma balada para marcar o que eu conheci de vida
e o desfecho trágico,
prematuro e inesperado desse cidadão que foi Miguel Josino Neto, amigo de uma convivência de quase três décadas. Fecho os olhos e vislumbro um Miguel de fala mansa
que, todavia, dava vazão
às
torrentes de argumentos gestadas em raciocínios superiormente
aguçados
e não
raro revestidos de finíssima
ironia. Aliás,
Miguel Josino foi um exemplo de enorme precocidade nos multifacetados aspectos
da existência,
mormente, no dúplice
papel profissional de professor e de operador do direito. Precocidade que até fê-lo
aparentar mais idade do que efetivamente tinha, dada a grande maturidade
intelectual que naturalmente demonstrava nos vários domínios da vida.
Um aspecto interessante e que
decerto passaria - e passou -
despercebido para muita gente foi o especial apego que Josino devotava às personagens cervantescas do fidalgo
dom Quijote de la Mancha e seu fiel escudeiro Sancho Panza; até no timbre do papel utilizado em sua atividade de advocacia
privada ostentava aquela silhueta de ambos imortalizada na ilustração clássica de Gustave Doré. E colecionava quadros, gravuras, pequenas estátuas e outras peças artísticas que representavam sempre o magro perfil "del
caballero
de la triste figura", de patética armadura e lança arriada no seu esquálido Rocinante, sempre acompanhado do robusto fâmulo, Sancho Panza, em seu indefectível burrico, "el Rucio".
A partir da primeira e juvenil leitura
que fiz da magnífica
obra de Cervantes formei um convicção: era impossível alguém condensar, num só espírito, os díspares caracteres de Quijote e de Panza. Isto até conhecer Miguel Josino que, embora demonstrando de princípio a robustez física, a praticidade e o ceticismo típicos de Panza, mostrava-se visionário e cultor de acendradas paixões,
como procedia o engenhoso fidalgo de La Mancha. Sim, ele conseguia a síntese maravilhosa de ter os pés firmemente chantados na realidade
da existência
e a cabeça
a singrar mundos de abstração e fantasia. Talvez a girafa, figura também de sua enorme predileção (Miguel Josino colecionava centenas
de pequenas estátuas
desse animal) simbolizasse essa síntese tão rara...
Esses aspectos decerto que
representavam o pano de fundo dessa personalidade instigante, inquieta e não menos brilhante que foi Miguel
Josino - ele ria solto, aliás, quando eu
afrancesava seu nome para Michel Josin -, porém, mais relevantes eram outras
facetas de seu comportamento: homem cordial e detentor de virtudes cívicas, um ótimo filho, ademais de extremoso pai
de Pedro e Marília,
cujo coração virtuoso paternalmente acolheu, por igual, Talita, Camila
e Rebeca, filhas de sua amada Karla, tornadas suas também. Relevante frisar, por fim, que
Miguel Josino Neto era exímio
conhecedor da difícil
e nobre arte de fazer e, sobretudo, de conservar amizades. E soube ser um
grande e leal amigo.
Por tudo que representou a efêmera e fulgurante passagem de Miguel
Josino Neto por estes prados da existência, poucas vezes se viu tantas homenagens, tão sinceras e tão sentidas, quando das suas exéquias, nesta terra potiguar. Sem dúvida, tudo muito comovente. Por generosa e humanitária decisão de seu familiares, alguns órgãos de Miguel foram retirados e transplantados em várias pessoas, mitigando-lhes o
sofrimento por encerrar buscas e trazer esperanças de novos dias: vive Miguel Josino Neto, agora, como
olhos de uns e rins de outros. Pagou um belo tributo à humanidade e assim pôde transpor, na barca de Caronte, os rios Estige e Aqueronte, na grande viagem rumo às brumas da eternidade. Doravante, porém, permanecerá Miguel
Josino Neto como luminosa estrela no horizonte de nossas lembranças. Como deixou lançado seu homônimo, Miguel de Cervantes, "Seja passado o
passado. Tome-se outra vereda e pronto".Vai,
grande Miguel, agora sim um "Caballero de los Leones", de lança em riste e armadura reluzente, num
belo corcel de luz, desafiar e vencer
gigantes doutros mundos. Vai, amigo, cuidar das tantas girafas que vagueiam nas
savanas da imortalidade. Ave, Miguel.
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