O INVERSO DO AVESSO
Paulo Afonso Linhares
No momento em que a ferida é feita dói pouco ou quase nada; ruim mesmo é quando ela ‘esfria’ e aí nasce a constatação da profundidade e extensão dos danos causados. É quando a ferida dói tudo aquilo que pode doer.
Assim começa a parecer o ânimo de algumas pessoas - grandes dignatários do Poder Judiciário e eminentes lideranças do mundo da política - após o resultado das urnas de 28 de outubro de 2018.
Claro, o denso populismo de extrema-direita arrebatou os corações de 57 milhões de brasileiros, enquanto todos os matizes de centro-esquerda à extrema-esquerda atingiu apenas 47 milhões, o que configurou uma acachapante derrota eleitoral.
Triste foi a impressão de que os dois lados da pugna sequer tinham noção do que estava em disputa e agiam como se tudo aquilo fosse como um reles jogo de futebol em que o “#Ele, não!” seria suplantado por um nada menos enigmático “#Ele, sim!”. E esses ‘discursos’ monossilábicos findaram por prevalecer, a despeito do tanto que deveria ser debatido acerca dos grandes problemas nacionais para legitimar o veredito da Soberania Popular, na eleição presidencial de 2018.
O que prevaleceu, todavia, foram bordões despolitizados e fórmulas simplistas de apelos imediatistas de solução de pequenos problemas: o banimento de um “kit gay” que ninguém sabe o que é, contra o “botijão de gás de cozinha a 45 reais” a alentar muitos lares economicamente desfavorecidos. E as grandes questões nacionais que não apenas deveriam balizar o debate político, mas, serem o divisor de águas na formação da vontade do corpo eleitoral, foram olimpicamente esquecidas, ao menos no momento crucial das escolhas feitas na solidão das cabines indevassáveis.
Sem dúvida, tiveram grande peso mesmo os boatos e mentiras - denominados genericamente como “fake news”, para reforçar a tradição brasileira do abuso de anglicismos - assacados através das redes sociais da Internet, sobretudo, porque o Tribunal Superior Eleitoral se mostrou incapaz de combatê-lo.
Findos os foguetórios e libações comemorativos da vitória eleitoral, emergem com força as indagações sobre tristes aspectos da realidade de um país seriamente enfermo em múltiplos aspectos. Como superar os enormes gargalos da economia de um país periférico? Como resolver o gravíssimo problema do déficit fiscal que perpassa todas as unidades federativas, da União, Estados e Municípios brasileiros? Como há de ser solucionado o indigesto e inadiável problema da previdência social? O que há de ser feito para reduzir o crescente e angustiante índice de desemprego que atinge parcelas ponderáveis da população deste país continente? Enfim, em que bases será estruturada a retomada do desenvolvimento nacional?
Evidente que arroubos autoritários e planos simplórios estão distantes como soluções para esses magnos problemas. Claro, não se pode exigir do governo Jair Bolsonaro um arsenal de fórmulas prontas para solucioná-los com um estalar de dedos, todavia, é razoável que o presidente que assumirá em janeiro de 2019 tenha a exata dimensão do que representa o Brasil no mundo, sobretudo, de que podemos retroceder no plano externo, com o enfraquecimento das relações comerciais com importantes parceiros, em especial a participação no bloco dos Brics, a derrocada do Mercosul, ademais da presença do Brasil em diversos organismos internacionais que foram mais obras da excelente diplomacia brasileira, do que de governos e líderes políticos circunstanciais.
Dizer que vai retirar o Brasil da ONU ou que vai apoiar a transferência da embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém, na contramão da quase unanimidade dos países do mundo, não deixa de ser algo que beira à absoluta irresponsabilidade. Sobretudo, se se considerar a posição da diplomacia brasileira - que não é petista, tucana ou meramente direitista, mas, herdeira de belíssima tradição do Barão do Rio Branco - na sua trajetória de inserir o Brasil no concerto das nações civilizadas. Com efeito, a carreira de Estado cujo escopo é o de viabilizar a representação do Brasil através de unidades (embaixadas) mantidas na maioria das nações amigas, é uma das melhores do mundo, máxime pela formação de excelência que os jovens aspirantes a diplomata recebem no Instituto Rio Branco, noção que escapa do conhecimento da maioria de nossa população. Daí que Bolsonaro igualmente ignorar isso constitui mais um grande problema a ser equacionado pelo governo que começa em 01 d janeiro de 2019.
Certo é que o Brasil precisa de seus parceiros internacionais cujo volume de negócio tem relevância para a balança comercial, a exemplo da China, o maior de todos, ou mesmo os países árabes, que mantêm conosco um comércio que dá superávits anuais superiores a 7 bilhões de dólares, enquanto Israel proporciona apenas 1,5 bilhões de dólares. Óbvio que, seguindo as boas práticas da diplomacia brasileira, deve-se lutar para não perder nenhum deles, mas, no mínimo, que seja preservado quem melhor atende aos interesses do Brasil. Desdenhá-los pode ser um fatal erro, sobremodo, com a imposição de pesadas perdas para o agronegócio que sufragou o nome de Jair Bolsonaro.
Aliás, vale lembrar que, nos Estados Unidos da América, as idiotices de Trump têm causado sérios estragos à política externa norte-americana com atitudes do tipo “cutucar o cão com vara curta”: rompeu o acordo nuclear com o Irã deixando em maus lençóis os parceiros ocidentais (França, Alemanha e Inglaterra) e abriu uma perigosa guerra comercial contra a China, com desdobramentos imprevisíveis, porém, um dano concreto já causou: o agronegócio norte-americano do chamado Corn Belt (em português, “Cinturão do Milho”), está a amargar pesadas perdas em razão das retaliações econômicas chinesas em resposta aos arroubos do Tangerine Man.
Com essa bobagem de mudança da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, o agronegócio que produz e exporta proteína animal para países muçulmanos - das regiões Sul-Sudeste e Centro-Oeste, que votou maciçamente em Bolsonaro - poderá perder um mercado excelente da carne helal (“helal”, em árabe, corresponde a “permitido, autorizado”, em português. Nos países não islâmicos, este termo é usado para se referir aos alimentos autorizados de acordo com a lei islâmica “Xariá”) e de outros bens e serviços que o Brasil exporta para o mundo árabe. O mesmo se diga relativamente aos exportadores de soja para o rico e superpopuloso mercado chinês: um alinhamento automático do Brasil à política de Trump contra a China, já insinuado por Bolsonaro em entrevistas, poderá deixar muitos dos entusiasmados eleitores deste sem compradores para a soja que produzem, está que é principal “commodity” da pauta de exportação do agronegócio brasileiro.
Ao que parece, o Trump tupiniquim e sua equipe imaginam que podem governar um país continental como o Brasil com bordões idiotas e arroubos pueris. Isso funcionou bem na campanha eleitoral, até mesmo como manobra diversionista: ao invés de propostas concretas e viáveis para a gestão racional da máquina governamental, da economia, educação, saúde, segurança pública e relações exteriores, que não existiam, o candidato trouxe como agenda filigranas como flexibilização do porte de armas de fogo, o repúdio às políticas afirmativas de certas minorias (comunidade LGBT, movimentos negros, indígenas, a mentirosa idiotice do tal “kit gay” etc.), o rompimento político como países vizinhos que têm governo repuxados como “de esquerda”, alem de um besteirol mais amplo e, como tal, desassociado de maior aprofundamento no campo das ideias.
Salta aos olhos que Bolsonaro, deputado federal do baixo clero apesar dos sete mandato, não aprendeu a liturgia do importante múnus que desempenhará a partir de janeiro d 2019. Nem a maioria daqueles que compõem o “núcleo duro” de seu grupo. A cada instante vão aparecendo bocagens ditas pelo próprio presidente eleito ou de alguém do seu círculo íntimo: a ultima foi a revelação de que o futuro superministro da Economia, o banqueiro e economista Paulo Guedes, também conhecido como “Posto Ipiranga”, numa tensa reunião técnica sobre questões orçamentárias perguntou o que diabos era aquela tal de “LOA”, nada mais que a Lei Orçamentária Anual. Mais um “fake new”? Coisa nenhuma! Segundo narra em artigo o professor de Economia da Unicamp, Pedro Paulo Zahluth Bastos, na Carta Capital, “um técnico do IPEA informava que o futuro ministro da Economia do governo Jair Bolsonaro, Paulo Guedes, tinha acabado de ter uma reunião com integrantes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Os técnicos discutiam a LOA e foram interrompidos pelo futuro ministro: o que mesmo é a LOA? Sério? Não pode ser. Como é possível que um economista experiente prestes a assumir o Ministério da Economia não saiba que a LOA é a Lei Orçamentária Anual? Só pode ser brincadeira de petista infiltrado". Pode? Nos gabinetes de Brasília, começa a assustar mesmo é o grau de desconhecimento do futuro ministro da Economia do governo de Jair Bolsonaro, Paulo Gudes, sobre a administração pública.
O exercício da presidência da República tem sua liturgia, que deve ser observada. E nesse chão os amadorismos são perigosos. Ora, na alta cúpula bolsonariana, perpassa uma ideia tosca de que, ganhando a eleição presidencial, não apenas o governo, mas, o Brasil mesmo passou a pertencer ao vitorioso e, nesse diapasão, os 47 milhões de eleitores que não votaram em Bolsonaro devem ser politicamente “tratorados”, para usar a imagem hedionda que cunhou Eduardo Bolsonaro, o primeiro filho e pretenso herdeiro do capitão-presidente, em mais um delírio de poder.
Estranho é que há um esforço para que prevaleça esse ralo e superficial da política que, todavia, atraiu ponderável parcela majoritária do eleitorado brasileiro, assustado que foi pelas grandes estruturas midiáticas de que deveria ser destruído esse “dragão da maldade” chamado apenas PT, sem deixar claro qual seria a alternativa de poder. Votou-se, assim, para “tirar o PT”, sem ao menos se dar conta de que isto ocorreu quando do impeachment fajuto contra Dilma Rousseff, tanto é verdade que entre a data da eleição de Bolsonaro até sua posse, que sofrerá da Síndrome do Pato Manco será Michel Temer. A expressão "pato manco" (do inglês, “lame duck”), na política norte-americana, designa o político que continua no cargo, mas por algum motivo não pode disputar a reeleição e perde a expectativa de poder.
Sem embargo, na tradição política brasileira, ao “pato manco” nem o indefectível cafezinho é servido, pois, ensina velho anexim de caçadores ingleses, que “nunca desperdice pólvora com pato morto” (“Never waste powder on a dead duck”). Ao pato manco Temer caberão apenas grasnidos de adulação ao futuro inquilino do Alvorada para, quem sabe, ser agraciado com o posto honorífico de embaixador nalgum país inexpressivo, ou livrar-se de uma ‘cana’ antes do carnaval de 2019.
Claro, os barões da mídia (Globo, Estadão, Veja, Folha, Band e SBT), em sua maioria, tinham como candidato o insosso Geraldo Alckmin que, como já era previsto, não decolou e obteve míseros 4,76% dos votos no primeiro turno da eleição presidencial. A maioria do eleitorado preferiu o cardápio simplista do populismo de extrema-direita. Coisas da democracia. Para os 47 milhões que votaram em Haddad uma pálida esperança: que Bolsonaro siga aquela malsã tradição da política brasileira de nada cumprir do que foi dito nos palanques das campanhas ou mal-ajambradas aparições nas redes sociais e entrevistas à imprensa, no ritmo do “esqueçam o que escrevi (ou disse). Algo como o inverso do avesso, que poderá ser menos ruim para o Brasil.
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