domingo, 20 de novembro de 2011

Artigo de Paulo Afonso Linhares

ODOR DO BRASIL

Paulo Afonso Linhares
           
             Caso 1: Visitando as dependências da vetusta Université Laval, na Ville de Québec, Canadá, deparei-me com uma cena inusitada para os padrões brasileiros. Advertido por uma brasileira que habitava o edifício em que residiam estudantes de pós-graduação de vários países do mundo, a querida amiga Lucila Martins de Moura, então professora que ali cursava mestrado, fui ver a porta do apartamento de uma estudante da África do Norte que se encontrava em seu país natal. Alguém que decerto lhe devia, colocou pela fresta da porta um maço de notas de dólares canadenses, que ficou com uma parte para fora, ao alcance de quem quisesse apanhá-lo. O estranho é que aquele dinheiro ficou ali quase três meses sem que os zeladores ou qualquer dos outros moradores resolvesse "achá-lo"...
            Caso 2: Noutro momento posterior, chegando a Lisboa em companhia de minha filha Ingrid Paola e do casal amigo Cristina e Daniel, fomos recepcionados por um grande amigo brasileiro que igualmente cursava mestrado na famosa Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e gentilmente se dispôs aliviar-me do peso da bagagem no trajeto até seu apartamento. Coube-lhe levar minha pasta Samsonite com passaporte, passagens etc. Fomos de "Metro". Sentamos e esperamos o trem na linha que leva ao Campo Pequeno, conhecido bairro lisboeta. Fomos e, quando já de chegada à Estação de Campo Pequeno que fica na Avenida da República (próximo à bela Arena de Touros), sentimos falta da tal pasta. Ficamos apavorados, pois não sabíamos se fora ela deixada no trem ou no banco de espera da estação. Faltou-me o fôlego somente de ver o sufoco do amigo guardião da pasta que, para ser exato, não valia essas coisas todas, embora tivesse potencial para causar alguns transtornos (passaportes, algum dinheiro, telefones etc.). Falamos com funcionários do Metro. Um deles advertiu que se ela fosse encontrada por "imigrantes" jamais a veríamos de volta. Porém, em pouco tempo soubemos a (boa) notícia: a pasta fora encontrada num banco da estação próxima do Aeroporto da Portela por um dos zeladores que ali trabalhava.  Nem é preciso dizer, "last but not least", que o alívio foi geral, sobretudo quando lembrávamos de casa, do que teria acontecido se fosse no metrô de São Paulo ou do Rio...
            Caso 3: Mais recentemente, fui tomar um lanche numa loja chamada "Açaimania", no Bairro Nova Betânia, em Mossoró. Para evitar que a minha Sophia (1,6 anos) pegasse o I-Phone adquirido dias antes, coloquei-o sobre uma cadeira vazia da mesa. Depois, paguei a conta e fomos embora. Já chegando em casa, percebi que tinha esquecido o gadget inventado pelo gênio Steve Jobs. Dez minutos depois estava no estabelecimento e o celular já havia esfumaçado-se no ar, ou como se diz no lugar, "tomou doril"; alguém o surrupiara como é costume neste Brasil sem porteira nem vergonha; achado, deveria ter sido entregue à gerência pois certamente o seu dono viria procurá-lo. Coisa nenhuma! Interessante foi a atitude (suspeita) dos empregados da casa, que me atenderam pessimamente e não fizeram nada para ajudar a recuperar não um aparelho apenas (que de tão novo sequer fora ativado o recurso de seu rastreamento), mas uma agenda de mais de 800 contatos, sem a qual é quase impossível viver o dia-a-dia. Até hoje ninguém procurou entregá-lo, a despeito do apelo divulgado na Rádio Difusora de Mossoró, quase sempre eficazes.
            Caso 4: Dois dias após o "descenso" do meu celular, fui a uma farmácia e, quando ia ao estacionamento, divisei no chão uma pequena bolsa. Recolhi-a e quando abri o fecho lá estava um lindo telefone vermelho, com um inconfundível "scent of woman" e, noutro compartimento, um papelzinho, escrito com letra bem feminina, era um rol de compras. Senti-me quase um Drummond, naquele famosíssimo conto "A bolsa e a vida"... Não quis ser indiscreto, pois apenas buscava um número que pudesse contatar a dona daquele telefone vermelho. Logo uma pessoa ligou e se identificou como noivo da moça, de nome Cristiane, que perdera o telefone. Dei o número do velho telefone que me restou e o endereço. Na manhã seguinte ela me procurou e, emocionada, olhando-me com belos e juvenis olhos verdes, agradeceu e balbuciou dizendo que aquele era "um gesto raro". E se foi.
            Por que "um gesto raro"? Infelizmente porque a noção que a maioria da população tem é a de que cada um deve "levar vantagem em tudo, certo?" E nessa aplicação cada vez mais frequente da "Lei do Gerson" (o nosso "canhotinha de ouro" nem merecia esse anátema; entrou de gaiato nesta história como garoto propaganda de uma marca de cigarro...) é preocupante e nos reserva um futuro sombrio, em que impera a desonestidade, a esperteza e ao desabrigo de preceitos éticos de convivência social. Neste ponto, o nosso querido Brasil fede e muito. Como fica, em casos desta natureza, a solidariedade social? Seriam os estrangeiros - inclusive brasileiras que viviam no edifício de Québec melhores que nós? Seria o anônimo zelador luso melhor do que nós? Por ter devolvido o celular de Cristiane não me acho melhor que ninguém; cumpri meu dever de cidadão, de solidariedade social. Só entendo que esse deveria ser o comportamento de todos os cidadãos deste país. Coisa a ser ensinada na família e nas escolas. E socialmente exigida. Utopia? Pode ser. Aliás, de repente esse pequeno episódio se dissipou de minha mente, sobretudo, quando soube da incomensurável perda do meu dileto amigo, deputado Nélter Queiroz, que naquele mesmo domingo, viu a vida de seu filho Gustavo Retlen Costa Queiroz, de apenas 23 anos, ser ceifada num estúpido acidente automobilístico. Esta sim, enorme, revoltante e definitiva perda.   

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