MITOS DO DIREITO
E
OUTRAS INCERTEZAS
Paulo Afonso Linhares
Nos ásperos tempos que vivemos a maior das
certezas é a
de que tudo é cada
vez mais incerto e movediço,
como se um grande princípio
da indeterminação
governasse os atos humanos e a vida das sociedades contemporâneas, para alterar conceitos e mudar o
sentido das coisas. Em suma, como asseverou o filósofo Marx, para fazer desmanchar no ar
tudo que é sólido e, complementamos, que carrega a
tintura de definitividade, de verdade assentada ou juízo irrefutáveis. O relativismo, a provisoriedade
e a precarização,
já se
incorporaram à noção que se tem da natureza e da vida
social, sem qualquer conotação
de bem ou de mal, de negativo ou positivo.
Na realidade, nos domínios da ciência quanto na práxis das comunidades humanas, é
corriqueira a mutação dos conceitos. Veja-se, por exemplo,
a generalizada satanização
pela Medicina da ingestão
de substâncias
como os açúcares
e os lipídios
(gorduras) nas dietas alimentares. Com uma certeza muitas vezes descolada de
base científica
tem sido afirmados os males que elas causam ao organismo humano, sobretudo,
quando ingeridas em excesso. No entanto, recentemente, pesquisas abalizadas
realizadas por prestigiosas instituições
da Inglaterra e amplamente divulgadas trazem a intrigante conclusão de que, em pessoas sadias (não diabéticas e não hipertensas) a ingestão, mesmo excessiva, de açúcar ou de gorduras, separadamente, não apresenta potencialidade ofensiva à
saúde das pessoas. O risco de graves
danos à saúde estaria na combinação de ambas as substâncias. Verdade? Pode ser, embora outra
pesquisa ainda mais aprofundada, a ser realizada por instituição mais gabaritada que aquela, possa
concluir diversamente: açúcar
e gordura combinados não
fazem mal; o perigo estaria na ingestão
excessiva de um ou de outra. E não
causaria maior surpresa se uma terceira pesquisa, realizada por outra instituição mais prestigiosa, concluísse que o consumo de açúcar e gordura, mesmo em excesso e
combinado, nenhum malefício
causaria à saúde humana.
Outro dilema da ciência foi a dúvida instilada há
quase um século sobre a propagação da luz: seria através de ondas ou de partículas de energia (ou corpuscular)?
Thomas Young e James Clerk Maxwell,
a partir de sólidas
cogitações
teóricas
e exaustivas demonstrações
empíricas, concluíram
pela natureza ondulatória da luz,
no final do século
XIX. Em 1900, todavia, o alemão Max Planck refuta essa teoria quando
afirmou que a energia emitida por um corpo aquecido, um pedaço de metal, por exemplo, se propagaria
não
como um fluxo contínuo
de ondas, mas, composto por minúsculos
pacotes encapsulados de energia, que denominou de "quantum".
Posteriormente, essa noção foi ampliada pelas pesquisas de Wilhelm Wien,
John William Strutt, também conhecido como Lord Rayleigh,
Philipp Lenard,
Albert Einstein (que denominou os pacotes de energia de "fóton", nomenclatura até
hoje utilizada), Ernest Rutherford, Niels
Bohr, Louis-Victor de Broglie, Arnold
Sommerfeld, Werner Heisenberg,
Erwin Schrödinger,
Max Born e John von Neumann. Tudo fera, gênios mesmo. Restou claro que a Física clássica, moldada no determinismo por
Isaac Newton, não resolveria o problema. Foi necessária a adoção
da chamada Física
Quântica,
baseada no indeterminismo e no cálculo
das probabilidades caracterizados pelo Princípio da Incerteza de Heisenberg.
Disso tudo resultou a concepção de que a propagação da luz se dá
tanto na forma de ondas quanto pela
emissão
de partículas,
a depender de certas condicionantes. Em suma, todos contribuíram de algum modo na tentativa de
desvendar o livro da natureza, porém,
mantida a certeza de que tudo é relativo
e incerto. Ora, se as palavras, valores e certezas mudam, a despeito das
experimentações
e dos modelos teóricos cuidadosamente construídos, mais incerteza grassa no ambiente
das ciências
sociais aplicadas, em especial no mundo do direito.
Neste
cenário,
por exemplo, o direito cada vez mais se afigura como mero sentimento e
infinitamente mais distante daquela ideia de uma ciência do direito defendida por Kelsen e
tantos outros, sobretudo, quando nos situamos no campo minado da sua aplicação e interpretação, através das quais a própria lei - tida como direito objetivo
- leva às
leituras mais díspares
e que traduzem sentimentos pessoais e ideológicos do julgador, embora "ao juiz em particular caberia descobrir a solução mais justa possível para o caso concreto mesmo que não se ajuste ao seu sentimento pessoal de justiça conjecturado num momento inicial",
nas palavras de Luciano Roberto Bandeira Santos (cfr. A cientificidade
do direito, a ponderação de princípios e a argumentação jurídica sob a perspectiva da filosofia de Karl Popper. Jus Navigandi,
Teresina, ano 17, n. 3309, 23 jul. 2012. Disponível em:
<http://jus.com.br/artigos/22260>. Acesso em: 24 jul. 2014).
Aliás, já é
antiga a noção de um "Direito Quântico", como a que defende o jusfilósofo brasileiro Gofredo Telles Júnior, para quem seria uma espécie do Direito Natural –
não
aquelas variantes construídas
doutrinariamente como categorias ideais (seja o jusnaturalismo teológico de Tomás de Aquino ou o jusnaturalismo
racionalista de Hugo Grotius e, mais recentemente, na bem moldada roupagem que
lhe dá
John Finnis, entre
outros), mas, o direito que emanaria de um governo legítimo e traduziria a interação dos "fatores multívios do meio ambiente e das imposições genéticas dos seres vivos
– e que simplesmente exprime a disciplina imprescindível da convivência humana". Em suma, a conhecida
contraposição
entre onda e partícula, na Física, corresponderia àquela mesma que há
entre poder e resistência, no Direito.
Na
contramão
desse pensar, infelizmente o direito contemporâneo, mormente no Brasil, é
edificado a partir de mitificações da realidade e da superposição de categorias metafísicas, a exemplo das noções de "força normativa da Constituição", "sentimento
constitucional", "justiça",
"legitimidade" etc. A "justiça" é uma categoria metafísica e como tal impossível de ter um conceito preciso. Com
efeito, cada sentença
prolatada traduziria a aplicação
do direito segundo critério
de Justiça,
segundo os juízes
monocráticos
ou colegiadas que as prolatem. Todavia, se nesta oração a palavra "justiça" for substituída por "vontade geral",
"espírito
republicano", "preceito democrático"
ou mesmo "Deus", em nada mudaria porque são categorias metafísicas de impossível
refutação
e, como tal, incognoscíveis.
Neste
sentido, razão
maior teria o filósofo
Karl Popper, que nega ao direito o status de ciência, na medida em que não se lhe permitem qualquer refutação, a falseabilidade, porquanto somente
tem cientificidade a teoria que aceita confrontação com os fatos. Noutras palavras, somente é científica aquela teoria que possa ser falseável.
Questões
filosóficas
ou epistemológicas
à parte,
na prática,
a sufocante judicialização
da vida e o acendrado ativismo judicial, no Brasil, dão o tom de incerteza e indeterminismo às relações jurídicas, sejam entre pessoas privadas ou
entre um Estado cada vez mais poderoso, tentacular e invasivo, e o cidadão continuamente sozinho, confuso,
espoliado e até destituído de esperança.
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