domingo, 8 de novembro de 2015

Artigo de Paulo Afonso Linhares

O SONHO DA ELEIÇÃO REVERSA

Paulo Afonso Linhares 

Nos trabalhos da Constituinte de 1987, uma das grandes bandeiras dos setores progressistas era introduzir no texto da nova carta política elementos da democracia participativa, no objetivo de reduzir alguns dos efeitos mais desagradáveis da democracia representativa, a começar pela infidelidade dos exercentes de mandatos eletivos em face daqueles que os elegem, algo já captado pelas lentes do filósofo Jean-Jacques Rousseau, no seu “Du Contrat Social” (publicado em 1762).
Esse matizamento ganhou concretude no texto da Constituição vigente que, no parágrafo único do seu artigo 1º declara que “[…] todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. “ Deste modo, coexistem no atual sistema constitucional brasileiro a democracia representativa (ou indireta) e a participativa (ou direta/semidireta). Isto representou uma significativa quebra da tradição constitucional brasileira que, desde a Constituição Imperial de 1822, mantinha uma forte filiação ao regime político representativo, caracterizado pela escolha que faz o corpo eleitoral dos representantes às assembleias legislativas e para cargos executivos (em alguns países até mesmo os juízes são também eleitos). Todavia, o constituinte foi cauteloso quando colocou no artigo 14 da atual Carta Política apenas três instrumentos de democracia participativa: um da democracia direta, que é o plebiscito e dois da democracia semidireta, que são o referendo e a iniciativa popular de projeto de lei. Aliás, plebiscito e referendo já eram parte da história do constitucionalismo brasileiro. Inovação mesmo, somente a iniciativa popular de projeto de lei.
Os setores progressistas da constituinte tiveram uma derrota quando não emplacaram outros instrumentos da democracia participativa no texto constitucional, em especial o chamado “recall” político. O que é isto?  Ora, ainda na Idade Média europeia apareceu a ideia de “mandato imperativo”, que se traduzia na imposição da vontade dos eleitores ao representante eleito. Outra experiência importante de intervenção dos eleitores na representação política ocorreu no Brasil, através do Decreto de 16 de fevereiro de 1822, que criou o Conselho dos Procuradores Gerais das Províncias do Brasil, por influência de José Bonifácio de Andrada e Silva, o chamado “patriarca da Independência”. No preâmbulo desse Decreto constava uma estranha regra, ao menos para aquela época: "... os quaes Procuradores Geraes poderão ser removidos de seus cargos pelas suas respectivas Provincias, no caso de não desempenharem devidamente suas obrigações, si assim o requererem os dous terços das suas Camaras em vereação geral e extraordinaria, procedendo-se á nomeação de outros em seu logar" (mantida a linguagem original). Tipicamente, era a normatização da doutrina do mandato imperativo, com matizes de outro instituto que, nos Estados Unidos da América, seria chamado de “recall”, conforme previsto na Carta de Los Angeles, de 1903.
Através do “recall” os agentes políticos de qualquer dos poderes dos Estados-membros e das estruturas de poder local (no plano federal não existe essa previsão), nos EUA, podem ter seus mandatos revogados através de eleições, independentemente da conduta do agente político “recalled”, ou seja, pode sofrer a destituição mesmo sem praticar qualquer ato de improbidade. Aliás, na América do Sul apenas a Constituição da Venezuela, no seu artigo 72, prevê a revogação de mandatos de todos os cargos eletivos, através daquilo que denomina “referendo revocatório”.
Fato é que, no Brasil, não é possível a revogação de mandatos por essa via, embora ultimamente setores da oposição ao governo de Dilma Rousseff defendam a sua destituição através de alto que confundem com o “recall”: o “impeachment”. Claro, só muita ignorância ou enorme má-fé podem permitir o embaralhamento desses dois institutos jurídicos, para “a nuvem ser tomada por Juno”, como diziam os antigos. As diferenças são evidentes, sobretudo, no que respeita à motivação (enquanto no impeachment há necessidade de ter o agente praticado grave crime de responsabilidade, no recall bastam acusações meramente políticas) e à iniciativa (no recall ela será dos eleitores, no impeachment será quase sempre do Poder Legislativo). Não há com o confundi-los, embora que neste Brasil-sem-porteira tudo pode acontecer, até boi voar.
Assim, a impopularidade política pode levar a um “recall” do agente político (que não há por aqui), porém, jamais a um “impeachment” que, no texto constitucional, exige-se expressamente a prática de crime de responsabilidade, por exemplo, por parte do Presidente da República. Essas coisas são lembradas justo quando, certamente mais por má-fé do que por ignorância, importantes setores da oposição ao governo Dilma - que depois da derrota nos dois turnos da eleição presidencial de 2014, aposta num terceiro turno, numa eleição reversa -, ademais dos grandes conglomerados da imprensa conservadora, tentam transformar o “impeachment” previsto no artigo 86 da Constituição da República em singelo “recall”, que por aqui, repita-se, não foi adotado. O caminho há de ser outro: se Dilma está mal politicamente, seus opositores devem esperar que seu candidato vença as próximas eleições presidenciais e se ultime a tão decantada “alternância do poder”. Fora dessa bitola, é golpe e desastre certo para nossas instituições democráticas.

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